Correio dos Açores - Que relevância atribui ao Dia Mundial do Rim?
João José Esteves (Director do Serviço de Nefrologia do Hospital do Divino Espírito Santo) - Há dois aspectos a salientar. Em primeiro lugar, este dia é uma chamada de atenção mundial para a doença renal crónica, para os seus tratamentos e para a prevenção da mesma. Por outro lado, é um alerta para os serviços públicos. No que toca a catástrofes naturais ou a outros eventos, tal como a pandemia por que passámos há pouco tempo, tem que haver uma estratégia concertada a nível nacional e europeu. Importa reflectir sobre a dependência da tecnologia e elaborar planos de contingência para os doentes que estão extremamente dependentes de uma técnica, tais como os pacientes com doença renal crónica.
Qual a prevalência na Região da doença renal crónica?
A população portuguesa é muito homogénea em termos do território continental e das ilhas, existindo, mais ou menos, a mesma prevalência da doença renal crónica. Apesar de termos mais diabéticos na Região do que em Portugal continental, isso não se reflecte na quantidade de doentes que temos em diálise. Na verdade, temos um pouco menos de prevalência, mas temos uma população mais jovem a sofrer de doença renal crónica nos Açores, com uma média de 65 anos, quando comparado a Portugal continental.
Embora isto possa ser multifactorial, está relacionado com a literacia, cuidados de saúde, com a situação arquipelágica onde não é fácil o acesso a cuidados nefrológicos universais em todas as ilhas. É importante pensar em algumas estratégias de acessibilidade, de modo a que haja o acesso a cuidados de nefrologia universais para todas as ilhas.
Quantas pessoas fazem hemodiálise no Hospital do Divino Espírito Santo?
Terminámos o ano de 2022 com 118 doentes em diálise, 28 doentes em diálise peritoneal e 92 doentes transplantados.
Desde a pandemia, o transplante tem crescido muito lentamente. Aliás, durante a pandemia, transplantou-se muito pouco e, de momento, ainda estamos a recuperar. Não tenho os números exactos da transplantação deste ano, mas sei que, no ano anterior, foram transplantados quatro doentes, dos quais três com dador de cadáver e um com dador vivo. Este ano, transplantámos apenas um doente. Costumávamos transplantar, em média, entre oito e nove doentes por ano. Desde 2019 até à data, o número de pessoas a necessitar de transplantes tem evoluído, o que fez crescer o número de doentes em tratamento. De um ano para o outro, costumamos ter 5% de aumento dos doentes incidentes e passamos a ter, em 2022, 10%, o que se deve ao facto de entraram mais doentes e de saírem menos.
Como se caracteriza a doença renal crónica?
Esta é uma doença crónica, não transmissível, caracterizada por uma lesão que provoca a perda progressiva e irreversível da função dos rins, sendo evitável em 75% dos casos. As doenças geneticamente transmissíveis, que não são passíveis de serem prevenidas, representam apenas cerca de 15% dos doentes.
Ou seja, as três grandes causas de doença renal crónica evitável, que representam 75% dos doentes em diálise ou em transplante, são a hipertensão arterial, a diabetes e a obesidade. É muito importante sensibilizar o doente para uma vida saudável, activa, evitando a ingestão de muitos anti-inflamatórios que provocam, também, doenças renais crónicas. Tratar e prevenir atempadamente estas três doenças resulta em menos 75% de doentes no final.
Calcula-se que, em Portugal, em cada dez doentes, oito sofrem de doença renal crónica em diferentes estádios, desde o mais leve ao mais grave. A maior prevalência de doença renal crónica da Europa verifica-se em Portugal. A meu ver, devia haver planos nacionais e supranacionais para controlar as doenças que são tratáveis, evitando chegar ao estádio final. É um trabalho longo, árduo, de muita informação e investimento nas comunidades.
Para a doença renal crónica não há cura, existindo apenas o transplante e tratamento através da hemodiálise?
Existem três tratamentos para a doença renal crónica, nomeadamente a hemodiálise, a diálise peritoneal - realizada no domicílio - e o transplante renal, que é o melhor tratamento que pode existir. A doença renal crónica não tem cura. O transplante é um tratamento e tem uma vida média de 12 anos. No entanto, há doentes que têm um rim transplantado durante 40 anos e há outros que vivem cinco a seis anos. Os doentes tomam drogas imunossupressoras para não haver rejeição do órgão, mas existem rejeições crónicas a partir do primeiro dia em que o doente é transplantado.
Se o transplante for de um dador vivo, o prognóstico é melhor, assim como se não houver rejeições no primeiro ano. Todavia, não é uma cura. O paciente continua a ser considerado oficialmente como doente renal crónico, dado que só tem um rim e este é transplantado.
Um doente pode ser transplantado, logo que tenha uma idade inferior a 80 anos, bem como uma saúde estável e sem complicações, isto é, se não tiver comorbilidades que contra-indiquem. Evidentemente, uma pessoa com 80 anos é mais difícil.
O transplante é a melhor opção...
O transplante é sempre melhor, não apenas na expectativa, mas na qualidade de vida, na medida em que o paciente deixa de depender de uma máquina e de um tratamento diário ou trissemanal, passando a ter uma vida praticamente normal e activa. No entanto, importa referir que está sempre sujeito a tomar medicamentos que previnem a sua rejeição, os quais também diminuem a imunidade e podem criar problemas infecciosos ou outros associados à sua toma.
No que diz respeito à hemodiálise, esta faz-se no centro de diálise nas unidades hospitalares ou privadas, três vezes por semana e cada sessão tem uma duração de quatro horas, em média. Já a diálise peritoneal é feita diariamente, no domicílio, três a quatro vezes por dia. Neste último, há a possibilidade de se fazer o tratamento durante a noite, enquanto o doente está a descansar ou a dormir, com máquinas que fazem automaticamente a diálise. Porém, há doentes que têm indicação para tal e outros não, pois nem todos se adaptam.
A vida de uma pessoa diagnosticada com doença renal crónica muda radicalmente, além de que a vida familiar também é afectada. De que forma isso acontece?
O doente perde capacidades cognitivas, físicas e económicas. Muitas vezes, os tratamentos são incompatíveis com o trabalho que os doentes tinham, pelo que passa a ser um problema social e económico para o paciente e para as famílias. Além disso, há que ter em conta o que implica ter um doente no domicílio, desde cuidados com a alimentação, aos transportes e à diminuição de rendimentos. Ora, tudo isso contribui para haver uma alteração muito substancial na vida dos doentes e das famílias.
No caso da hemodiálise, o doente tem de se deslocar à unidade hospital para fazer quatro horas de tratamento, três vezes por semana, com interrupção da sua vida familiar, do seu trabalho, enfim, da sua rotina diária.
Além disso, depois de um tratamento, os doentes sentem-se muito mais cansados, sobretudo na hemodiálise, porque são trocas muito rápidas de solutos. Neste caso, o doente traz três a quatro quilos, que foi acumulando durante dois dias, para retirar em 4 horas. Muitas vezes, isso provoca mal-estar e cansaço extremo. Quando os pacientes chegam a casa têm que recuperar da sessão de diálise.
Que cuidados a doença renal crónica implica na alimentação?
A alimentação é muito restritiva, porque os doentes normalmente urinam menos. Há uma restrição de ingestão de líquidos, que não é fácil, pois a pessoa continua a ter sede. Existem muitas estratégias que se utilizam, tais como não comer sal e temperar os alimentos de outra maneira para não despertar a sede. Os líquidos ingeridos nos doentes que fazem hemodiálise ficam retidos no organismo de uma sessão para a outra, pelo que as restrições alimentares e de líquidos são muito importantes no tratamento da doença. Não ingerir líquidos e controlar a alimentação implica um grande sacrifício para os doentes. No caso da diálise peritoneal, como os tratamentos são feitos todos os dias, a dieta é mais liberal e podem beber mais líquidos.
Que mensagem quer deixar neste dia?
Tenho duas mensagens, sendo que a primeira é para que os doentes se cuidem, tenham uma vida saudável, activa, com exercícios físicos ajustados a cada idade e façam uma alimentação adequada. A outra mensagem é para os Estados, num momento de desafios inesperados, como a pandemia, uma guerra na Europa, há que ter uma estratégia nacional e comunitária, de modo a sermos o menos dependentes possível de países externos. É importante criar planos de contingência e apostar em terapêuticas que não sejam tão dependentes de tecnologia. Ou seja, apostar em tecnologias menos sofisticadas, ter stocks de peças de fabricação comunitária, de modo a poder suprir, caso seja necessário, as necessidades dos doentes.
Carlota Pimentel