Carolina Medeiros trocou o descanso das suas férias por duas semanas de voluntariado na Tailândia

Correio dos Açores – Em Agosto de 2022 passou duas semanas e meia na Tailândia, na ilha Koh Yao Yai, numa missão de voluntariado internacional. Foi a primeira vez que fez algo deste género?
Carolina Medeiros – Sim, foi a minha primeira experiência com voluntariado internacional mas já tinha esta ideia na minha cabeça. Inicialmente, a minha prioridade seria África, no entanto, não foi essa a possibilidade que me deram. Sendo assim, os custos eram mais elevados e tive que esperar até começar a trabalhar e até que tivesse uma vida mais estabilizada. Sendo possível concretizar este sonho em 2022, avancei com a ideia assim que comecei a sentir que estava preparada financeiramente e mentalmente, porque é quando começamos a ter alguma maturidade que estamos relativamente aptos para fazer este tipo de desafios.

Para além da estabilidade financeira, como foi preparar-se mentalmente para este desafio?
Neste caso, não tive tempo para me preparar em nada. Não pensava na experiência em si, só pensava na logística de marcar as passagens, no que ia levar ou não, nas vacinas, etc. Senti que não tive tempo para pensar na experiência que ia ter, o que também é importante, mas, por outro lado, foi bom porque não tive tempo para pensar nas preocupações que podiam surgir.

Como se dá a escolha pela Tailândia?
A Tailândia era um dos poucos destinos que poderia escolher. Uma vez que foi tudo programado muito em cima da hora, com um mês e meio de antecedência, dentro dos destinos que estavam em aberto para Agosto foi o que mais chamou a minha atenção. Recordo-me que em aberto estavam a Somália, a Tailândia, o Vietnam e o Camboja, mas sendo que a Tailândia me despertava muita curiosidade pela sua cultura e pelas suas tradições, eu achei que seria bom iniciar o voluntariado na Tailândia.
Fui no início de Agosto, o que me preocupava um pouco porque as temperaturas estavam muito elevadas e a humidade também. As temperaturas, quer durante a noite, quer durante o dia, eram sempre de 40ºC com a humidade sempre a 100%, só aí foi uma adaptação relativamente complicada, porque o nosso organismo não está habituado e os níveis de hidratação têm que ser outros. Estávamos preocupados em relação às monções e às chuvas, mas felizmente não tivemos nenhum problema em relação a isso.
Quando chegámos, estivemos um ou dois dias em Phuket e apanhámos o barco para a ilha de Koh Yao Yai. Quando regressámos ficámos também uns dias em Puhket a descansar, porque são voos muito longos. Eu fiz Ponta Delgada – Lisboa – Dubai – Puhket. Foram 16 horas de voo, sem contar com o voo de Ponta Delgada para Lisboa. É muito cansativo e chegamos lá completamente exaustos e com o acréscimo da diferença horária. O regresso foi mais cansativo, porque em duas semanas e meia não sabíamos o que era uma cama nem uma casa de banho.

O choque entre a realidade vivida nos Açores e na Tailândia foi muito sentido?
Em Puhket, visto que é muito turístico, nós tínhamos tudo, mas na ilha onde fizemos o voluntariado, sem dúvida alguma que o choque cultural foi assustador e até a nível psicológico é preciso estar bem preparado.
Quando chegámos lá não tínhamos noção ao que íamos; sabíamos que não íamos ficar num hotel de cinco estrelas e sabíamos que não íamos ter as condições que temos em casa, mas por vezes, as pessoas têm uma ideia errada do voluntariado, pois acham que vamos para aproveitar os destinos, mas não, vamos para ajudar e para dar o nosso melhor.
Porém, quando chegámos lá reparámos que as condições eram bem piores do que as que esperávamos. A temperatura, como já referi, era bem elevada, o que fazia com que estivéssemos sempre cansados. Acordávamos às 06h00 e deitávamo-nos pelas 20h00/21h00, estávamos constantemente cansados, não conseguíamos andar muito e transpirávamos muito. Não estávamos desidratados, mas penso também que não estávamos muito longe disso.
Ficámos a dormir na sala dos professores da escola, que era um complexo aberto, em colchões de ioga, aqueles muito finos, e não tínhamos almofadas nem cobertores. Levei uma almofada de cá, mas em relação aos lençóis e cobertores, embora estes não fossem necessários, nós dormíamos com redes mosquiteiras para evitar as mordidas dos mosquitos.
Não tínhamos ventilação, muito menos ar condicionado. As janelas e as portas estavam sempre abertas e por cada duas pessoas havia uma ventoinha que não fazia muito efeito para o calor mas que funcionava para os mosquitos não pousarem muito. Uma coisa é estarmos num resort e termos tudo protegido, outra coisa é dormirmos, literalmente, no meio da floresta. Não termos condições para dormir foi também um dos factores que provocava muito cansaço.

Cuidar da higiene pessoal foi também desafiante...
Outro aspecto que fez uma diferença enorme foram as casas de banho. Achávamos que íamos ter casas de banho mas não tivemos, tínhamos latrinas no chão, e não tínhamos duche. Tomávamos banho com recurso a um balde e metíamos a água do banho na latrina. Não havia autoclismo nem havia duche. A água tinha que ser muito reutilizada. Eu tomava banho mas era quase como um banho de assento diário, porque para lavar o cabelo era todo um projecto. Quando nos deparámos com este tipo de condições às quais não estamos habituados há um choque psicológico e os primeiros dias foram muito complicados.

São estas as condições comuns à maioria dos moradores da ilha?
Sim, são as condições da ilha. Tivemos acesso a casas similares ou até piores, porque havia casas quem nem latrinas tinham, portanto, usavam um buraco no meio da floresta, na terra. As pessoas dormiam em redes de árvores, as condições eram mesmo más, mas os miúdos eram muito felizes porque não sabem o que é ter mais, nem sabem o que é ter uma casa de banho e um autoclismo.
Para nós foi relativamente complicado, até porque só tínhamos duas latrinas e éramos 16 voluntários, tínhamos que gerir tudo muito bem. Em relação à roupa, nós não tínhamos como a lavar, não tínhamos sabão, passávamos a roupa só no balde e púnhamo-la a secar num fio.
A alimentação foi também um aspecto que nos chamou muito a atenção, porque estamos habituados a comer tudo o que queremos e quando queremos e lá estávamos muito restritos. Na Tailândia comíamos três vezes ao dia. Comíamos às 07h00, às 12h00 e às 19h00 e a alimentação era sempre baseada em arroz ou massa com ovo, frango ou legumes. As refeições vinham sempre num saquinho e só tínhamos direito a essas três refeições, tudo o que quiséssemos comer a mais tínhamos que procurar em algum sítio que vendesse fruta ou algo do género.
Por outro lado, a alimentação era muito boa e saborosa, e nunca tive nenhum problema nem a nível intestinal nem a nível gástrico, mas não sendo a alimentação habitual, isso faz com que o nosso organismo responda de outra maneira. Não tínhamos água potável nem frigorífico, tínhamos que comprar garrafas de água só que ficavam quentes rapidamente, então senti muito esse problema porque não conseguíamos beber a água quente, tínhamos que fazer quilómetros para ir buscar água fresca e, realmente, a nível de hidratação foi muito complicado.

O que mais a surpreendeu pela positiva nesta experiência?
Aos miúdos é dado um único uniforme que é como se fosse religioso, porque muitos deles só tinham aquela roupa boa e muitos deles só tinham os sapatos do uniforme. Até me lembro de os miúdos jogarem futebol na escola e descalçarem-se sempre para não estragarem os sapatos da escola porque eram os únicos que tinham e jogavam descalços. Por outro lado, descalçam-se sempre que entram nas salas de aula.
Ao nível da higiene das crianças, nota-se que não tomam banho todos os dias nem tão pouco de dois em dois dias, até pelos cheiros, mas existe a obrigação de, depois de comerem, lavarem os dentes na escola. Em Portugal, nas escolas, não lavamos os dentes depois do almoço, não é uma regra geral e obrigatória, como na Tailândia, (…) mas eles lavam os dentes com a água que vem de um cano, e a água, na maioria dos dias, vinha mais castanha do que transparente.
(…) É também curioso que, na escola, não existam auxiliares educativas nem funcionários de limpeza. Até ao sétimo ano, os miúdos limpam as salas de aula com vassouras e limpavam os corredores da escola, enquanto, a partir do sétimo ano, os alunos fazem o seu próprio almoço e limpam as casas de banho, bem como o resto das áreas da escola. Desde novos que são ensinados a limpar e aquilo já lhes estava no sangue. Eles chegam à escola logo de manhã, uma hora mais cedo, e já começavam a varrer os corredores. (…) Só o facto de as crianças pegarem numa vassoura aqui seria um escândalo. Lá, se eles não lavam e não limpam, aí é que será o verdadeiro escândalo.

A diferença na língua falada foi também muito sentida?
Foi outra coisa muito complicada. Eles falam o tailandês e nós íamos ensinar inglês. Desde o pré-escolar que eles são ensinados a falar inglês, mas o tailandês é uma língua muito complicada para os europeus, porque para além de ser uma língua completamente desconhecida para a maioria, tem um alfabeto diferente, e só por aí tornava-se complicado dialogar com os miúdos. Tínhamos que dialogar por gestos ou num inglês muito, muito básico e nem sempre tínhamos a certeza do que estávamos a dizer. Trabalhávamos em grupos, e eu trabalhei com o primeiro ciclo, com crianças dos seis aos dez anos.

E a diferença de religião teve também algum impacto?
Senti também muita diferença ao nível da religião, porque na ilha eram todos muçulmanos e foi uma grande adaptação. As meninas, desde novinhas, mesmo que ainda não fossem menstruadas, já usavam o véu, inclusive, nas salas de aula. Fomos também avisados previamente de que não podíamos usar nem os ombros nem os joelhos de fora. (…) Mas nós é que estávamos a “invadir” a ilha, então tínhamos que os respeitar, obviamente. Fizemos uma visita de estudo à praia e fomos de calção e t-shirt. Não teve que ser abaixo do joelho, mas foi-nos pedido que não usássemos biquínis ou fatos de banho. Se não tivéssemos ido com as crianças, seria aceitável, mas, uma vez que fomos com as crianças, pediram-nos para termos esse cuidado, porque muitas delas não sabem o que é um fato de banho ou um biquíni.

Sentiu aceitação ou estranheza por parte dos locais em relação à vossa presença?
Senti muita aceitação. Senti que fomos tão bem aceites que, de uma certa forma, custava a aceitar a ideia de que nunca mais íamos lá voltar e que nunca mais íamos ver aqueles miúdos.
No dia em que chegámos à ilha, muitos miúdos foram buscar-nos de mota, porque lá os miúdos podem conduzir a partir dos seis anos, tanto que a maioria dos miúdos já ia para a escola de acelera. São muito meigos, muito responsáveis e estavam preocupados, sempre à nossa volta, queriam saber mais. Nós tirávamos uma fotografia e eles ficavam fascinados com tudo o que nós tínhamos, se bem que evitávamos utilizar coisas que não fossem essenciais
(…) As crianças eram tão doces. Houve um dia que cozinhámos para elas um prato de cada país, e como há muita produção de arroz lá, nós decidimos fazer arroz doce. Elas ficaram fascinadas e, como eles comem ou com uma colher de plástico ou com pauzinhos, quiseram aprender a comer de garfo e faca, quiseram aprender as regras de etiqueta, que são complexas, tinham muita curiosidade em ver fotografias do nosso país, o que tínhamos lá, e não só eles, os professores eram também curiosos em relação a este assunto e muitas vezes vinham jantar connosco porque queriam saber mais sobre os nossos países e sobre as nossas experiências de vida.

O que pensa que muda a curto prazo na vida destas crianças e jovens por intermédio destas missões de voluntariado?
Não podemos ir com o pensamento de que vamos mudar alguma coisa, porque vamos ficar frustrados e, efectivamente, não conseguimos mudar nada em tão pouco tempo nem conseguimos fazer um milagre, mas penso que deixei lá a minha boa disposição e energia, e penso também que consegui trazer alguma alegria pelo tempo que lá estive. A longo prazo, penso que conseguimos deixar lá a sementinha para as próximas pessoas que forem. Penso que não conseguimos ajudar a longo prazo, mas acho que conseguimos deixar algo lá que possa contribuir para o futuro.

Esta experiência faz com que se sinta mais feliz no seu quotidiano?
Sim, completamente. Foi uma experiência que não consigo traduzir em palavras. Foi gratificante e enriquecedora, mas, sobretudo, foi uma lição de vida. Cheguei a Portugal e comecei a ver a vida com outros olhos. Não sou pessoa de luxos, mas comecei a dar importância a outras coisas. Há quem diga que durante o voluntariado abrimos os olhos mas que esquecemos tudo quando chegamos a casa. Não. Continuo a ter alguns “luxos” porque nós cá temos que os ter, mas uma coisa é usufruir deles e outra é não lhes dar valor, e eu dou valor.
Por exemplo, hoje, se me falta água quente não fico frustrada porque do outro lado do mundo eu não tinha água quente para tomar banho. Hoje, se me falha qualquer coisa, seja roupa ou algo que me tenha esquecido, eu paro e penso que na Tailândia tinha condições muito piores. Inclusive, no início tinha algumas pessoas que não me apoiavam, que diziam que ia para o outro lado do mundo, onde existem muitas doenças, era um risco, sim, mas assim que me meti no avião essas pessoas foram as primeiras a dar-me esse apoio. É importante termos apoio porque estamos longe dos familiares, dos amigos, das nossas rotinas, culturas e condições de vida, e isso faz com que venha um turbilhão de emoções à cabeça.

Esta é uma experiência que pretende repetir?
Quero repetir a experiência noutro país, e penso que toda a gente que tiver a oportunidade deveria fazer uma experiência deste tipo, porque é muito gratificante chegar lá e saber que ajudámos um bocadinho. (…) Sinto que este ano tenho que me dedicar à minha família e a quem deixei cá nas minhas férias, por isso penso que este ano ainda estou um bocadinho fresca do ano passado, mas para o próximo ano tudo indica que irei avançar.


Joana Medeiros

 

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Autor: CA

Categorias: Regional

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