Correio dos Açores - Como se vive o Natal agora e como era o Natal antes do Pai Natal ter ocupado o lugar do Menino Jesus, da vaca e do burrinho?
Professor Rubens Pavão - Na minha opinião, o Natal - anunciado e celebrado como o nascimento do Filho de Deus, o «Jesus-Menino» - é uma data que não tem limites no tempo, de modo que o seu lugar nunca será ocupado, mas sim sempre glorificado no mundo cristão com a alegria que só o Evangelho nos transmite e, não exclui ninguém.
Contudo, os tempos são outros e, por vezes, essa mensagem de paz é substituída pela discórdia entre os povos, o que – como é o caso presente com a Ucrânia – gera a guerra e todos os crimes que arrasam o mundo.
Mas, apesar disso, há sempre um pedido de tréguas para, que, olhando a Família de Belém, todos repensarem na Mensagem que o Anjo anunciou aos pastores de Belém: «Não temais, pois anuncio-vos uma grande alegria, que será para todo o povo».
A minha geração despontou com a Europa a perfilar-se para o conflito que deu lugar à II Grande Guerra (1943/44) e que nos trouxe terríveis consequências sociais e económicas que chegaram até estas ilhas, transformadas em bastiões de defesa aérea indispensáveis para alcançar a vitória.
Já nessa altura, o Pai Natal era a figura mítica do tempo natalício, talvez porque ouvíssemos falar dele através dos coloridos postais de boas festas que os nossos parentes que residiam nos Estados Unidos nos enviavam, quase sempre com uma nota de um ou cinco dólares, conforme as posses, para ajuda do jantar do dia de festa…
Mas a geração que me seguiu, já assistiu, sobretudo no «dia das montras», a ver e a tocar o Velho do Natal em figura perfeita, vestido à maneira que os postais já nos haviam habituado, a distribuir brinquedos ou, então, convidar os meninos, sobretudo por carta, a pedir a prenda mais desejada.
Creio que nem todos acreditavam nesse «receber» perfeito, pois tudo o que pediam não era de todo aceite…; e, a decepção ao natural sentimento de insatisfação, só era compreendido com uma palavra carinhosa sempre da mãe: -«será para o ano … será quando puder ser…»!
Para mim, a «lenda» do Velho de Natal, passou a fazer parte das minhas interrogações de vida, ainda a frequentar a escola primária, teria eu 8 anos, quando o meu professor nos quis «desvendar» esse segredo mágico que tanto acreditava, dizendo-nos que quem nos trazia os brinquedos eram os nossos pais, que os compravam de acordo com os nossos pedidos…
Logo que cheguei a casa desabafei com a minha mãe, que me explicou o melhor que pode, a inconveniente lição que me tinha sido transmitida, mas também entendi que os segredos, talvez os mais triviais da vida, desde que não prejudicassem terceiros, ficavam para ser desvendados em outras ocasiões…, «avisando» que as minhas irmãs e os primos mais novos deveriam continuar a viver nessa ternura do Menino ou do Pai Natal…
Hoje, decerto, tudo é diferente e já o foi para os meus filhos e netos, que acalentaram a «lenda» até que, com muita naturalidade a foram compreendendo, mas sempre dentro do crescimento da família; e sinto que continua a pulsar em cada um, aquele coração que, mesmo silenciosamente, se comove, aquecido pela ternura.
E Deus quis que, passados 90 anos, continuo a acreditar que é perante o presépio ou só por um simples olhar de contemplação à imagem do Menino Jesus, que o Natal cristão é de ontem e de hoje, nada o substituindo ao conjunto da Santa Família de Belém, da vaca, do burrinho, dos pastores e dos anjos.
Contudo, observo que é diferente na forma como familiar e socialmente é vivido, talvez mais «solto», por via das comunicações aéreas dos que estão fora e trazem amigos; dos turistas que enchem hotéis e querem ter outra animação; enfim, no actual «conceito» de celebrar e distrair, como nos transmite os meios de comunicação, sobretudo a televisão. E, a tudo isto acresce um consumismo exagerado que «emperra» com aquilo que, por vezes, impede conseguirem alcançar o que projectaram, numa negatividade que se tornou contagiosa e de difícil solução
Por isso, é natural que ainda viva na recordação do tempo do «meu» Menino Jesus, - numa caminhada que me foi transmitida pelos meus avós e pelos meus pais e que passei aos filhos e netos - sobretudo na consciencialização que é preciso dar ao lugar central do Presépio e aos valores que representa na família.
Na «minha casa» da Rua dos Capas, a minha avó era quem primeiro nos despertava para os preparativos natalícios ao confeccionar os antigos e saborosos licores caseiros, sobretudo de tangerina e de anis, com essências compradas na Farmácia Garcia. E, no dia da «mistura», todo o ambiente enchia-se daquele aroma inesquecível que só no Natal acontecia … e, dias depois, era a prova da «mijinha» do Menino Jesus.
Outro anúncio do Natal acontecia ao domingo de manhã, quando ia à praça com o meu pai e adquiria uns bonecos de barro – muito toscos à vista dos actuais - que viriam a decorar e dar vida ao presépio, sempre feito no melhor canto da casa, rodeado de verdura, com ruas e canadas revestidas de farelo.
Em dia de Santa Luzia semeava-se o trigo e a ervilhaca para decorar as cómodas onde numa redoma a figura central era uma imagem do Menino Jesus, que fizera parte do dote de casamento.Na semana do Natal, as igrejas enchiam-se de fiéis para as novenas e onde também se acertavam melhor os cânticos para a noite santa. Antes da Missa do Galo preparava-se a mesa com figos, nozes, alfarrobas e as bolinhas de coco para receber familiares e vizinhos que nos iam saudar.
E, depois da missa – quando já eramos crescidos e «entendidos» – o Menino Jesus, ainda na «memória» da figura simpática do Velho de Natal, chegava com as prendas, por vezes com o que era mais preciso em roupas, vestidos e calçado, quem sabe se para sermos mais «iguais», no convívio diário no Liceu ou em alguma festa celebrativa!
As ruas da cidade não eram «ilhas» como hoje, onde nem todos se conhecem e, por vezes, nem se falam…
Daí haver uma «solidariedade de rua» que acudia os mais necessitados e tratavam os mais idosos que viviam sós.
O almoço ou jantar do dia de festa – sempre em família alargada - constava de galinha e carne assada, pois o perú só veio, quando se pode, muito mais tarde… e o bacalhau para a consoada, no tempo da II guerra mundial (1943/44), foi um costume trazido para aqui – e que ficou – através das famílias dos militares que aqui estiveram em missão de soberania.
Tudo era saboroso, sobretudo na confraternização e a sobremesa era pudim de feijão ou um outro recheado com nozes, figos passados e várias iguarias próprias da época.
Era ainda costume visitarem-se os presépios das igrejas da cidade, mais um passeio que a minha avó gostava que eu a acompanhasse, mas o que mais apreciava era o da Igreja da Esperança, porque as figuras eram «crescidas» e movimentavam-se!
A primeira árvore do Natal, que me lembre ajudar a enfeitar, foi um pinheiro oferecido pelo meu primo Humberto Pavão, uma maravilha para o tempo, com lâmpadas coloridas iguais às que hoje decoram a frente das nossas igreja e que a firma João Soares alugava…
… E, assim se vivia o espírito do Natal, como ainda hoje na maioria das casas, pois precisamos continuar a ter esperança, tolerância, paz e fraternidade que signifique sermos capazes de «olhar os lírios do campo e as aves do céu!».
Qual foi o “estrago” que a pandemia trouxe ao Natal em Família?
Nota-se – em alguns aspectos – os «estragos» que a pandemia trouxe ao Natal, mas que teve antecedentes que o precipitaram, talvez porque éramos obrigados a ficar em casa, sobretudo os mais novos, apesar de não faltar os meios digitais que são como um «espelho» de presença…
Aliás, esses natais passados já se tinham revelado como tudo muito a correr, em casa; e, todo o outro tempo, em convívios com amigos, pelo que nos fomos acomodando mais a nós do que era essencial em tradição, sobrelevando o aspecto religioso.
Por outro lado, as dificuldades que hoje enfrentámos em relação ao trabalho, à saúde e à falta de recursos para compra dos bens essenciais e ou outros «acessórios», também contribuíram para uma e outra falta de entendimento em família e em casal. E, mesmo olhando o Presépio, não foi atingido aquele conforto espiritual que ajudasse a dissuadir ressentimentos!
Daí que, quando essa luz da Fé deixa de nos tocar, caminhamos em permanentes acções repetitivas, sem direcção…
Mas, encarando a verdade que a vida nos apresenta - sem o moralismo que nem todos gostam - creio que devíamos meditar no heroísmo e na abnegação que nos mostram os povos oprimidos e em guerra, a viver em subterrâneos, sem luz, sem água, sem alimentos básicos até que surja alguém, tal como um «Deus- Menino» que os liberte!
Numa das suas homilias, o Papa Francisco disse que, para ter alegria na preparação do Natal, primeiro era necessário sentir o nascimento de Jesus, rezando para que haja paz; louvando o que nos deu, mesmo para aqueles que têm dificuldades.
Ouço e sinto por mim e pelos meus familiares que o «estrago» da pandemia, como sempre acontece em situações de crise, também chegou aos idosos, aos que vivem só, ao aumento dos sem - abrigo e também às escolas e à comunidade escolar, enfim a um conjunto não só de pessoas mas de instituições educativas que nos dão que pensar, porque tocam com a juventude que amanhã há-de ser Homem e Mulher com responsabilidades nos nossos destinos políticos e sociais.
Contudo e por experiência no meu dia-a-dia continua a haver um Menino que aproxima as gerações e lhes indica uma esperança de vida!
Foi com essa esperança que nos habituamos a viver e a prosperar – no que foi possível – durante séculos nestas ilhas. E, se houve gerações que emigraram por outro tipo de «coronavírus» (mas não de morte), essas também conseguiram reerguer as suas vidas e já regressam à terra para gozar a reforma!
É preciso é educação/ensino; muito estudo; muito e aplicado trabalho numa luta sem tréguas, que foi comum à minha e a outras gerações e que deve continuar.
- « Exortemos a vida na sua complexidade … e aqui cheguei! », comentou o Cardeal Tolentino de Mendonça.
O ouro, o incenso e a mirra que foi oferecido pelos Magos ao Menino transformou-se em ofertas do Pai Natal… No meio da crise a que nos reporta a situação de guerra na Europa, que desejo deixa neste tempo de Natal dedicado ao amor, à partilha e à convivência?
Ainda na catequese, aprendi que o ouro, o incenso e a mirra oferecidos pelos Reis Magos representavam a humanidade rica – média e pobre – postada em vassalagem perante o Deus soberano do Céu e da Terra, o salvador do Mundo!
Perante este quadro belo que também o Presépio nos inspira a reflectir, o Papa Francisco, numa das suas catequeses semanais disse que «os Magos representavam os sábios, os homens e as mulheres à procura de Deus - uma procura que nunca acaba e que esse percurso era o símbolo do destino de todos, pois a nossa vida é um caminhar, iluminado pela luz que clareia o caminho para encontrar a verdade … ».
Penso que estamos nesse momento de graça propício a uma proximidade com os que nos rodeiam, a qual, devendo ser construída todos os dias, agora mais nos desperta a repensar o tempo que passa.
Daí surgirem os apelos à paz e à felicidade dos povos e ao envolvimento das Associações sociais e religiosas no sentido de levar ao mundo representado na figura do Menino o mesmo destino e significado das prendas que os Reis Magos ofereceram quando ainda a viver no Presépio de Belém
Por isso é de louvar tudo o que é feito para minorar o sofrimento humano, «pois todos esperam uns dos outros e estimulam-se positivamente a fazer a sua parte. Todos contam».
E cito, também para mim, este cântico à Sagrada Família:
Sagrada Família de Nazaré,
tornai também as nossas famílias
lugares de comunhão e cenáculos
de oração,
escolas autênticas do Evangelho
e pequenas igrejas domésticas.
- Respondi o melhor que pude, mas sempre na experiência que fui vivendo…
A todos, um Santo Natal!
João Paz