Correio dos Açores - Como descobriu a paixão pelo fado?
Raquel Dutra - Fui educada a apreciar música de qualidade e o fado fazia parte do diversificado repertório que ouvíamos em minha casa quando era jovem. Carlos do Carmo, Amália Rodrigues, Camané, Dulce Pontes e, mais tarde, Mariza, Ana Moura, integravam o género de música portuguesa que costumava ouvir e apreciar. Sempre achei a interpretação do fado desafiante e, por conseguinte, aliciante. Foi na minha passagem pela Tuna que comecei a cantar fado.
Por onde já levou a sua música?
De uma forma directa, em contacto com o público, já levei a minha música aos distritos de Viseu, Lisboa e ilhas dos Açores: Santa Maria, Faial e Terceira. Indirectamente, a minha música já chegou e chega a destinos tão diversificados como Brasil, Canadá, Inglaterra, Estados Unidos da América, Argélia, Áustria, Espanha, Turquia, Nova Zelândia, Austrália, quer pela venda directa de CD’s que sei que chegaram a estes destinos, quer pela sua distribuição via streaming nas plataformas onde está disponível: Amazon e iTunes.
Já respirou fado nas casas de fado em Alfama e no Bairro Alto?
Na qualidade de cliente, já estive numa casa de fado no Bairro Alto. Por cá, e na qualidade de fadista, já actuei na Casa do Bacalhau, local que, de momento, mais se assemelha ao ambiente das casas de fado de Lisboa.
Tem algumas músicas originais?
Tenho vários temas originais. Alguns que escrevi para a Tuna de que fui elemento fundador, a ‘Enf’in Tuna’. Um fado que tenho registado em minha autoria e outros que embora existam em esboço, ainda não tomaram forma final.
Qual o espectáculo que mais a satisfez?
É difícil seleccionar um, porque todos os momentos que me permitem partilhar a “minha” música com quem a aprecia, são para mim, espectáculos muito generosos. Mas, aquele que recordo como o meu maior feito, pelo planeamento que envolveu, pelo carinho com que foi preparado, por representar um marco na minha carreira musical e pelo facto de ter esgotado a sala onde decorreu, diria que o espectáculo que me deu mais satisfação até hoje foi o de apresentação e lançamento do meu primeiro álbum “Cantos do Mar e da Terra”, que aconteceu a 30 de Novembro de 2012, no Teatro Micaelense.
Achaa que o fado toca no coração das pessoas?
Tenho a certeza que sim. Penso que, mais que outro género, talvez por revelar um cunho muito pessoal de quem interpreta, o fado é capaz de gerar muita emoção. Pelo menos, para mim, a interpretar, exige muito. Por vezes, e dependendo do estado de espírito. Se estou mais sensível, há fados que tenho dificuldade em cantar porque sei que me irão emocionar. Acredito que, se essa emoção passa para quem ouve, também emociona quem a sente.
Podemos saber qual o seu fadista de eleição?
Enumero três. Pela sua personalidade, pela sua forma de estar e de ser, pelo seu trabalho em prol do fado, pelo empenho no seu reconhecimento como património imaterial da Unesco, diria que Carlos do Carmo é uma grande referência para o fado, para este país e para mim. Chorei, verdadeiramente emocionada, quando soube da notícia do seu desaparecimento. Claro que Amália Rodrigues é uma marca indiscutível do fado no mundo e um símbolo maior deste estilo musical no nosso país sendo, para mim, também, uma grande referência. Apesar de não ser exclusivamente fadista, e talvez por isso me identifique com ela, Dulce Pontes é a cantora portuguesa que mais admiro e cujas interpretações de fado mais me emocionam. Já tive oportunidade de a ouvir ao vivo e fiquei absolutamente estarrecida com o seu desempenho. É, sem dúvida, uma grande senhora da música portuguesa.
Em quem se inspira para cantar?
Nas grandes referências que conheci e que sigo e que já aqui enumerei, assim como em tantos outros artistas que tenho vindo a conhecer, com quem tenho vindo a trabalhar e que tanto me têm ensinado, especialmente desde que, formalmente, me decidi a “aprender” a cantar em regime de educação artística. Inspiro-me muito na minha intuição, também, para interpretar.
Qual foi o artista mais importante que já acompanhou?
Esta questão é impossível de ver respondida… como classificar “o artista mais importante?”… Já partilhei o palco com gente tão talentosa. Têm sido vários e muito diferentes os artistas com quem tenho trabalhado, com todos tive tanto a aprender e tantos ensinamentos diferentes a colher. Já acompanhei e fui acompanhada por grandes músicos, já cantei com grandes vozes. Não consigo eleger um mais que os restantes… Mas posso enumerar alguns como Carmen Subica, Helena Castro Ferreira, Carina Andrade (sopranos), Helena Oliveira, Nélia Freitas (conhecidas vozes femininas açorianas), Bruno Almeida e João Ponte (tenores), André Costa, Carlos Frazão, Teresa Vilaverde, Tiago Dias, Svetlana Pascoal ou Sviatlana Lahachova (pianistas), Ana Paula Andrade (compositora e pianista), Isabel Albergaria (organista), Luís Coelho e Rúben Torres (guitarra portuguesa), Alfredo Almeida e Jorge Dutra (guitarra clássica), Adílio Soares e Rafael Carvalho (viola da terra), Lázaro Raposo (percussão), Diogo Silva e Valter Ponte (clarinete), etc., etc…
Nos Açores, as pessoas apreciam o fado?
Em todo o lado, há público para todos os estilos. Já tenho feito alguns espectáculos de fado que guardo como serões aprazíveis e que ficarão na minha memória como bons momentos de música. Quando as condições se proporcionam para promover um espectáculo de encontro entre o público e o artista, é mais garantida a probabilidade de o público apreciar o fado.
Há bons tocadores nos Açores?
Conheço vários bons tocadores e reconheço o seu valor e trabalho. Não toquei com muitos, para além dos que fielmente me acompanham. Apesar de músicos amadores, entregamo-nos ao que fazemos com alma e somos uma família na música.
Como se sente a cantar acompanhada pelo seu pai?
Sinto-me orgulhosa por tê-lo comigo, grata pelos seus ensinamentos e pelo seu trabalho em prol da nossa música, essencialmente no que ao repertório açoriano diz respeito. Ele tem sido o grande empreendedor do património musical que temos vindo a trabalhar. Sinto-me feliz por partilhar com ele o palco e a vida.
Que emoções pretende transmitir quando estás a cantar?
Tudo depende do que canto. Cada tema, cada obra tem uma mensagem muito diferente. Se canto música lírica açoriana, procuro a identidade insular, a harmonia musical, o tema da terra e as nossas raízes, a saudade... Quando canto fado, a interpretação permite-me, com maior criatividade e mais improviso, trabalhar emoções como a alegria, tristeza, o amor, traição, ciúme. Quando o registo é lírico e se há ajuda do guarda-roupa é possível enfatizar a pobreza, ostentação… o desafio está em transmitir a emoção do que se canta.
Qual o maior sonho na música?
Já concretizei alguns dos meus maiores objectivos na música, como, por exemplo, cantar acompanhada de uma orquestra. Entre outros planos, que se estão a preparar, pretendo lançar um segundo álbum dedicado ao cancioneiro açoriano. Temos, na vertente tradicional, também, um espectáculo preparado para ser enriquecido com instrumentos de orquestra. Estamos à espera da oportunidade para o concretizar. Entre outros objectivos, gostava de fazer chegar a minha música a todas as ilhas dos Açores. Gostava de ter oportunidade de actuar em mais palcos nacionais e internacionais.
Como correu o recente espectáculo na Igreja de Nossa Senhora de Fátima?
O espectáculo “Encruzilhadas musicais de Helena Castro Ferreira”, preparado pela Associação Vox Cordis, integrado no festival “O mundo da música” e pensado pela soprano Helena Castro Ferreira, foi uma proposta culturalmente muito interessante, na qual tive o prazer e a honra de participar.
Para além de me ter proporcionado a oportunidade de voltar a partilhar o palco com pessoas com quem adoro trabalhar (Helena Ferreira, Adílio Soares e Jorge Dutra), permitiu-me cantar com pessoas com enorme talento e com quem nunca me tinha cruzado musicalmente (pianista Svetlana Pascoal, clarinetista Válter Ponte, tenor João Ponte, cantora Mariana Rocha). Este espectáculo permitiu conciliar estilos musicais muito diferentes que se fundiram num encontro muito interessante entre todos os músicos presentes. Foi uma experiência muito positiva que nos deixou, a todos, com vontade de repetir.
Como foi participar no espectáculo “Dido e Eneias” no Teatro Micaelense?
A experiência de integrar uma ópera e apresentá-la numa casa como o Teatro Micaelense é (foi) uma experiência singular. A ópera permite-me juntar duas artes de que sempre gostei: representar e cantar. Encarnei, nesta peça, o papel de vilã, a Feiticeira da história o que foi, para mim, um desafio ainda maior, pelo ónus da personagem.
Como é cantar trovas de Francisco Lacerda?
É uma responsabilidade dar voz a este ilustre compositor açoriano. Para além de gostar muito do seu trabalho para voz, admiro-o muito enquanto músico. É uma honra cantar as trovas de Francisco Lacerda. Dar voz e vida ao seu trabalho, é um enorme privilégio.
Qual a relação com a viola da terra?
A viola da terra é o símbolo maior da nossa identidade musical enquanto açorianos. Portanto, a viola da terra representa a minha identidade na música açoriana. Adoro a sua sonoridade e sempre que posso, gosto de fazer-me acompanhar dos seus acordes. Gosto de pensar que posso, de alguma forma, ser embaixadora deste símbolo da nossa identidade açoriana para o mundo.
Como se sente ao fazer animação para turistas?
Quando faço espectáculos na presença de turistas, para além de partilhar, pela música, um pouco da identidade portuguesa, tento dar a mostrar mais dos Açores do que apenas a sua paisagem. Pela música conhece-se muito da tradição de um lugar e de um povo. Nestas ocasiões aproveito para lhes dar a conhecer um pouco mais sobre a cultura açoriana, que é tão rica.
Comente a frase: “Quando um artista faz uma pausa, na verdade não pára, evolui”.
Esta frase acompanhou uma publicação nas redes sociais em que dava a conhecer o meu trabalho formativo em registo lírico, aquando da minha primeira audição após ter ingressado no curso livre de especialidade: canto no Conservatório Regional de Ponta Delgada. Estávamos no ano 2020 e, como bem se sabe, os anos 2020 e 2021 foram particularmente difíceis para os artistas. As actuações foram limitadas, os momentos de contacto presencial com o público foram poucos e muito condicionados às medidas impostas para controlo da pandemia por Covid-19. Portanto, o que pretendia referir era que, apesar de não conseguir estar com o público, como gostaria, aproveitei para aperfeiçoar a minha técnica vocal.
Gosta de cantar árias?
Adoro cantar árias. Tecnicamente, desafiam-me a dar o que mais posso exigir das minhas capacidades vocais e interpretativas. Têm-me proporcionado grandes momentos de aprendizagem e de evolução artística.
Que livro tem entre mãos?
Actualmente estou a ler “A Estrela de Belém - Contos de Natal”, de Agatha Christie.
Qual a sua maior paixão: enfermagem ou música?
A Enfermagem faz-me sentir útil perante a comunidade onde exerço as minhas funções, a música permite-me explorar e preencher a vida artística e criativa. Uma não substitui a outra. São duas artes que me fazem ser aquilo que sou como ser humano.
António Pedro Costa