Alberto Ponte, em ‘Gerações’

A “Padaria Caseira” de minha mãe…

Correio dos Açores - Como se cuidam as gerações nascidas nas décadas de 50, 60 e 70 e quais as diferenças que sentem nas gerações nascidas no novo milénio?
 Alberto Ponte - Nasci precisamente em meados da década de 40, mais precisamente 1946, no seio de uma família simples como tantas outras que existiam e ainda existem nos Ginetes. Os meus pais não possuíam qualquer formação académica especial, pois tal era reservado a um grupo muito restrito de afortunados. Mesmo assim não tenho razões para me lamentar desse tempo, pois o meu pai conseguiu abrir uma pequena Padaria que durante um pouco mais de 15 anos manteve a funcionar para servir as gentes de Ginetes, Várzea e até uma pequena parte de Candelária. Não investiu no negócio por razões de ordem financeira porque não estavam ao seu alcance e as exigências legais eram demasiado severas numa época em que não havia qualquer apoio do estado como sucede neste maravilhoso tempo em que vivemos. Ainda hoje apesar de já não fazer parte deste mundo é recordado pelos poucos que ainda por cá existem como uma boa pessoa, honesto profissional numa área bastante difícil de gerir na altura. Tinha um bom coração, sempre pronto a auxiliar os que possuíam ainda menos que nós numa época em que o conhecido por “pão de trigo” era um luxo para a maioria das famílias.
Aos 7 anos de idade fui frequentar a escola primária que na altura era obrigatória apenas até à 4ª classe, o que deixava desde muito cedo os jovens à deriva sem possibilidades de emprego porque precisamente demasiado jovens, embora muitos influenciados sobretudo pela profissão dos pais irem prematuramente trabalhar na construção, outros na lavoura e muitos outros ainda de enxada “cavar a terra” numa época em que os tractores agrícolas eram quase inexistentes e sobretudo não ao alcance da maioria das famílias. No meu caso, não segui profissionalmente as pisadas do meu pai pois não era a minha verdadeira vocação e ele próprio tentou que fosse mais além do que ele próprio havia conseguido. É evidente que a seu lado se encontrava a minha mãe que além de tradicional “dona de casa” também contribuía para o equilíbrio do pequeno negócio familiar. Chamavam-lhe uma “padaria caseira”.
Faço parte de uma família de quatro filhos, e sobretudo porque havia uma diferença de 5 anos entre os três primeiros, sendo eu o “mais velho”, os meus pais, em busca do melhor, deram-me a oportunidade de frequentar a antiga Escola Industrial e Comercial de Ponta Delgada. A distância que separa os Ginetes da cidade não permitia fazer diariamente a viagem, pois nada era gratuito. Tinha de sair de minha casa para tomar o autocarro que ligava Mosteiros a Ponta Delgada cada Segunda-feira às 5h45 da madrugada só regressando no Sábado seguinte, depois do meio-dia. Durante a semana residia na casa de uma família dos Ginetes que vivia na Rua Vila Nova, em Ponta Delgada, a quem os meus pais alugaram um quarto que partilhava com os filhos da mesma. Porque, por natureza, sempre fui um eterno insatisfeito, mais tarde decidi ir para o Seminário onde aí aprendi um pouco a controlar-me pois dessa grande Instituição guardo as mais belas recordações, acrescentando que o tempo que lá estive não foi nada perdido, embora não tivesse alcançado o objectivo final que era o de ser padre.

No trabalho?
Porque possuía uma pequena formação académica após ter abandonado o Seminário de Angra, graças ao meu grande amigo padre António Ferreira Leite, de saudosa memória, antigo pároco dos Ginetes, que tinha contactos privilegiados tão importante na altura, consegui o meu primeiro emprego na Junta Geral, em Ponta Delgada. O trabalho, evidentemente, não requeria grande esforço físico como a maioria dos meus amigos de infância tiveram “demasiado cedo” de suportar. Trabalhava num gabinete com duas moças, aproximadamente da minha idade e com as quais sempre me relacionei muito bem. Na maioria dos casos não tínhamos contacto directo com o público, e quando tal sucedeu algumas vezes, sobretudo comigo, procurei sempre ser atencioso, compreensivo e até sorridente ao contrário da imagem que transmito muitas vezes, o que leva quem me não conhece verdadeiramente a perguntar se estou zangado. Devo dizer, apesar do espírito crítico que sempre fez parte da minha pessoa, digo-o com toda a sinceridade que hoje a maior parte dos nossos jovens e até gente de gerações que vão caminhando para o final de vida activa no mercado do trabalho se comportam de um modo geral exemplarmente. É verdade que nada é perfeito, que existe sempre espaço para melhor, mas hoje não assistimos, com tanta assiduidade, a atitudes de prepotência como muitas vezes observei “no meu tempo”. Conseguir emprego num escritório ou departamento governamental era algo que, por vezes, transformava as pessoas que se julgavam demasiado importantes. Felizmente não eram todas, mas a impressão que me ficou da época é a de que, com toda a frontalidade que me conhecem, acabo de descrever.
É evidente que existem excepções e, neste caso, a tendência felizmente é a de melhorar.
Creio que tal comportamento se deve ao facto das pessoas hoje serem melhor informadas, conhecedoras dos seus direitos, e tal é de louvar. Quer num serviço público ou privado, todos deverão ser recebidos com o maior respeito e, quando necessário, não há que ter medo de reclamar. Sei que, por vezes, é difícil e que ainda existe algum receio porque infelizmente as tradicionais “cunhas e represálias” ainda são uma realidade bem viva, mas que é necessário totalmente erradicar. Hoje, na minha idade, nada tenho a perder, mas ainda me perturba quando tenho conhecimento de injustiças onde a falta de competência causa por vezes problemas que facilmente seriam possíveis evitar.

O autocarro que dava a volta à ilha em dois dias

Nas viagens?  
Viagens eram, na maioria, realizadas em autocarros de transporte colectivo.
Tinha 21 anos quando, pela primeira vez, viajei de avião de Santa Maria para S. Miguel após umas curtas férias que passei com o meu amigo padre António Leite nessa pequena Ilha vizinha. Não posso impedir-me de prestar homenagem a dois homens que no interior da nossa ilha tiveram a coragem de fundar para servir esta zona entre Ponta Delgada e Mosteiros uma companhia de transporte colectivo denominada “Melo e Martins”, nomes dos respectivos proprietários. O Sr. Melo natural da freguesia dos Ginetes e o Sr. Martins natural da freguesia dos Mosteiros. Não conheço os pormenores, mas sei que foi convertida, a determinada altura, em Autoviação Micaelense, tal como existe ainda hoje.
Voltando à empresa Melo e Martins, prestou, na altura, um grande serviço a esta gente. Lembro-me de ver os proprietários, algumas vezes, conduzirem eles próprios os autocarros que eram poucos e cuja comodidade era muito diferente dos que conhecemos hoje. Existia o condutor, mas igualmente um cobrador, conhecido popularmente por “ajudante” ,que se encarregava da cobrança do bilhete, de auxiliar na carga e descarga de pequena bagagem que os passageiros, eventualmente, faziam transportar. Apesar de tudo parecer um pouco primitivo, graças a essa companhia “Melo e Martins”, lembro-me do meu pai assinar um jornal que era publicado diariamente em Ponta Delgada que era distribuído após as 16:00 horas, mas que o recebia no próprio dia por volta das 18:00 horas vindo com a mala do Correio no autocarro que passava nos Ginetes, ao contrário do que sucede neste tempo, em que a entrega dos CTT deixa muito a desejar.
Durante muitos anos no Verão eram organizadas “excursões” que partiam dos Ginetes para dar a volta à Ilha de S. Miguel durante 2 dias. No final do primeiro, as gentes pernoitavam na vila do Nordeste ou na Povoação. Eram grandes momentos de convívio partilhado por todos que, alegremente, cantavam, saiam em todas as freguesias para visitar as igrejas ou determinados lugares turisticamente com algum interesse, sem esquecer uma pequena dança e cantoria do nosso folclore acompanhado por um acordeão ou guitarra. Era pouco, simples, mas divertido pois aí se encontrava unida gente de diversas gerações. Eram autocarros alugados cujo pagamento era dividido por todos os que participavam na viagem. Era um hábito repetido cada Verão por diversas freguesias de S. Miguel pois aos Ginetes também chegavam várias excursões que por, alguns momentos, alegravam o Largo do Tanque, frente à igreja.
Hoje, a maioria das famílias possui a própria viatura o que é excelente pois, em muitos casos, deixou de ser um luxo para se tornar em algo verdadeiramente necessário que nos dá uma liberdade jamais imaginada nesses longínquos anos da década de 50 do século passado. Todavia, um passeio de autocarro tem sempre algo de especial que traz de volta aos mais idosos um pouco dessa alegria de viver que para muitos é uma verdadeira terapia. Felizmente, ainda tenho a minha viatura que me dá alguma liberdade de sair, mas sempre que me convidam para um convívio raramente recuso, pois é a melhor forma de apreciar as belezas da nossa ilha. Neste sentido, hoje as autarquias têm mantido uma preocupação louvável, no sentido de “tirar da solidão” gente que, de outra forma, não tem capacidade para respirar o ar puro das nossas maravilhosas estradas. Penso que é importante deixar um testemunho o mais fiel possível do nosso tempo para as próximas gerações.
Leva-me este aparte a recordar uma pequena reportagem vídeo que há cerca de dois anos uma jovem realizou sobre os Ginetes e onde dizia que o primeiro automóvel apareceu nesta terra no ano de 1960. Mesmo se me perturbou um pouco tal afirmação preferi reduzir-me ao silêncio pois não sei para que fim realizou tal trabalho. Na década de 40 era demasiado pequeno para me recordar, mas nos anos 50 sempre conheci automóveis nos Ginetes. O padre Evaristo tinha o seu e, por cá, existia mais uns poucos. Há muito que guardava para mim este lapso que não prejudica a vida de quem quer que seja mas a história da minha terra tem de ser escrupulosamente feita da verdade.

 Na família?  
Como no início referi, éramos uma família composta por 6 pessoas em que o meu pai, era o grande chefe, paradoxalmente de estatura pequena, mas muito inteligente. Não era violento, mas com um simples olhar mantinha o respeito. Tinha uma profissão complicada que não permitia férias nem mesmo beneficiar totalmente de fins-de-semana com a natural, necessária e benéfica tranquilidade. Encontrava sempre algo para se ocupar. Não era o género de pai disponível para distribuir “beijinhos”, mas sei que amava muito a minha mãe e os filhos.
A hora da refeição era sagrada. Toda a família sentada à mesma mesa, conversávamos um pouco de tudo, mas era ele quem dirigia o diálogo. Se havia algo, como sucede em todas as famílias, que não concordava com a minha mãe, não admitia que nós os filhos nos intrometêssemos no diálogo. Dizia imediatamente “cala-te que não são contas do teu rosário”. É um assunto que apenas diz respeito a mim e à tua mãe. Quando cresceres compreenderás, o que não consegues agora”.
Ninguém se sentava à mesa com boné a tapar a cabeça, como vemos tantas vezes nestes tempos de liberdade. Exigia que se pretendesse levantar-me antes de todos terem terminado a refeição que “pedisse autorização”, o que pela minha teimosia me valeu algumas vezes ter de estar sentado demasiado tempo para o meu gosto, esperando que todos terminassem, mas era uma norma imposta por ele e dela não abdicava.
Depois de ingressar no Seminário, olhava já para mim de uma forma diferente pois a seus olhos, como mais velho dos meus irmãos, sentia que deveria ser um exemplo para eles e que tal não podia falhar. Curiosamente, embora crente ,não era de “beatices”. Nos últimos anos de vida, meu pai transformou por completo a sua religiosidade e no Canadá, para onde emigrou em 1966, pertenceu mesmo a alguns movimentos da Igreja, sobretudo nos últimos anos de vida e após o início da merecida reforma. Como abandonei o Seminário e após cumprir o serviço militar obrigatório, fui juntar-me à minha família no Canadá e 18 meses depois voltei para casar com a mulher que há mais de 50 anos faz parte de mim e se encontra a meu lado para nos sofrermos mutuamente, o que é encarado como uma grande aventura e coragem pois sabemos muito bem as várias crises que “assaltaram” as famílias causadas pela ruptura do casamento. Não é uma crítica, pois também na minha família é uma realidade que não escondo, mas algo que perdeu a importância que merece e já visto com a maior naturalidade. É evidente que tentei com minha mulher educar os nossos filhos da mesma forma que fomos educados no “nosso tempo”. Uma pura ilusão para qualquer casal que pretenda fazer o mesmo. Sou pai de 3 filhos. Infelizmente 1 rapaz sobreviveu apenas 9 meses em consequência de uma gravidez de risco de que foi vítima minha mulher. Restam-me 2, uma rapariga já com 49 anos e um rapaz que dentro de 1 mês fará 43, que são e serão sempre o meu orgulho tal como da minha mulher mesmo se nem sempre partilhamos ideias e formas de viver semelhantes. É o bem mais precioso que possuímos, a quem procurámos sempre dar o melhor e haja o que houver na vida, a porta do pai e da mãe está sempre aberta.  

Nos amigos?  
Ninguém é capaz de viver totalmente só e sem amigos.  Conheci e conheço ainda muita gente que fez parte do meu universo de amizades como criança, na escola, no Seminário, no trabalho, etc. etc. Hoje, com a idade, o contacto pessoal não é tão frequente como outrora. Sinto muitas vezes saudades de grande parte dos meus amigos que o tempo, a emigração e a morte separaram. As verdadeiras amizades do passado permanecem mesmo se a vista não as vê, mas o coração sente. Até aqueles que já partiram para outra dimensão da vida, alguns deles sepultados no Cemitério dos Ginetes fazem-me apreciar o que ainda possuo com alguma importância que é o dom da vida. Gosto de amigos sinceros mesmo que, delicadamente, me façam saber que não concordam comigo. No passado, as amizades, normalmente, nasciam do compromisso que orgulhosamente aceitávamos de ser parte activa no seio de uma comunidade. A própria escola que nos proporcionava desde criança excelentes ocasiões de fazer amigos hoje perdeu talvez essa forma de conviver que nos unia tendo por base o respeito pelos nossos professores, mas igualmente pelos amigos. Não é culpa dos docentes que, muitas vezes desmotivados, se resumem a cumprir ordens escritas que lhes retiram parte do poder que lhes era outrora confiado e da motivação que os levou a escolher uma profissão tão digna, que é ensinar, e até por vezes realizar um trabalho que deveria ser assumido pelos pais que “não têm muito tempo”, dizem eles. Infelizmente, as crianças são em muitos casos “depositadas na escola” e o professor se desenrasque. Temos uma imensa falta de verdadeiras lideranças e referências credíveis que, como outrora, consigam impor especial respeito nas nossas Comunidades. Os “velhos como eu” estão saturados e os jovens deixaram de acreditar.

A relação com a internet?  
A relação com a internet veio revolucionar por completo as nossas vidas. É verdade que foi uma grande descoberta que hoje, mesmo os idosos, como eu, já estão habituados a utilizá-la com alguma frequência, já não conseguiriam viver sem este novo mundo que se abriu à comunicação. Todavia, é esta a minha opinião, evoluiu demasiado rápido. Contribuiu, em muitos casos, para a falta de diálogo frente a frente, que alterou alguns hábitos tidos como sagrados no seio das famílias. Apareceu uma inesperada pandemia que contribuiu ainda mais para desenvolver este meio de comunicação a partir do domicílio.  Pessoalmente, tenho conseguido orientar a minha vida de “reformado”, mas sei que a maioria dos que fazem parte da minha geração enfrentam, por vezes, problemas complicados porque precisamente não os conseguem resolver. As videoconferências são uma realidade que têm a magia de virtualmente unir amigos e famílias e tal é inegavelmente maravilhoso sobretudo para quem vive num espaço tão isolado como nas ilhas dos Açores.
Recordo-me que quando nasceu a minha filha no Canadá, há mais de quarenta e nove anos, nunca consegui comunicar telefonicamente para os Açores, mais precisamente os Ginetes, para transmitir aos meus sogros a grande notícia que esperavam ansiosamente. Só foi possível fazê-lo por escrito, o que cá chegou provavelmente uma semana depois, como era habitual na altura. Hoje está tudo ao alcance de um pequeno aparelho que em poucos segundos nos coloca “cara a cara”.
Quanto às novas gerações, surpreendem-me constantemente pela facilidade com que utilizam esta ferramenta que, quer queiramos ou não, parece desde muito cedo não ter qualquer segredo para os jovens, alguns ainda de tenra idade. Aos pais compete estarem constantemente vigilantes e, se necessário, algumas vezes controlar a utilização. Na vida existem momentos a respeitar para tudo.

O tempo do rigor à mesa durante as refeições

Nas viagens?  
Viagens eram, na maioria, realizadas em autocarros de transporte colectivo.
Tinha 21 anos quando, pela primeira vez, viajei de avião de Santa Maria para S. Miguel após umas curtas férias que passei com o meu amigo padre António Leite nessa pequena Ilha vizinha. Não posso impedir-me de prestar homenagem a dois homens que no interior da nossa ilha tiveram a coragem de fundar para servir esta zona entre Ponta Delgada e Mosteiros uma companhia de transporte colectivo denominada “Melo e Martins”, nomes dos respectivos proprietários. O Sr. Melo natural da freguesia dos Ginetes e o Sr. Martins natural da freguesia dos Mosteiros. Não conheço os pormenores, mas sei que foi convertida, a determinada altura, em Autoviação Micaelense, tal como existe ainda hoje.
Voltando à empresa Melo e Martins, prestou, na altura, um grande serviço a esta gente. Lembro-me de ver os proprietários, algumas vezes, conduzirem eles próprios os autocarros que eram poucos e cuja comodidade era muito diferente dos que conhecemos hoje. Existia o condutor, mas igualmente um cobrador, conhecido popularmente por “ajudante” ,que se encarregava da cobrança do bilhete, de auxiliar na carga e descarga de pequena bagagem que os passageiros, eventualmente, faziam transportar. Apesar de tudo parecer um pouco primitivo, graças a essa companhia “Melo e Martins”, lembro-me do meu pai assinar um jornal que era publicado diariamente em Ponta Delgada que era distribuído após as 16:00 horas, mas que o recebia no próprio dia por volta das 18:00 horas vindo com a mala do Correio no autocarro que passava nos Ginetes, ao contrário do que sucede neste tempo, em que a entrega dos CTT deixa muito a desejar.
Durante muitos anos no Verão eram organizadas “excursões” que partiam dos Ginetes para dar a volta à Ilha de S. Miguel durante 2 dias. No final do primeiro, as gentes pernoitavam na vila do Nordeste ou na Povoação. Eram grandes momentos de convívio partilhado por todos que, alegremente, cantavam, saiam em todas as freguesias para visitar as igrejas ou determinados lugares turisticamente com algum interesse, sem esquecer uma pequena dança e cantoria do nosso folclore acompanhado por um acordeão ou guitarra. Era pouco, simples, mas divertido pois aí se encontrava unida gente de diversas gerações. Eram autocarros alugados cujo pagamento era dividido por todos os que participavam na viagem. Era um hábito repetido cada Verão por diversas freguesias de S. Miguel pois aos Ginetes também chegavam várias excursões que por, alguns momentos, alegravam o Largo do Tanque, frente à igreja.
Hoje, a maioria das famílias possui a própria viatura o que é excelente pois, em muitos casos, deixou de ser um luxo para se tornar em algo verdadeiramente necessário que nos dá uma liberdade jamais imaginada nesses longínquos anos da década de 50 do século passado. Todavia, um passeio de autocarro tem sempre algo de especial que traz de volta aos mais idosos um pouco dessa alegria de viver que para muitos é uma verdadeira terapia. Felizmente, ainda tenho a minha viatura que me dá alguma liberdade de sair, mas sempre que me convidam para um convívio raramente recuso, pois é a melhor forma de apreciar as belezas da nossa ilha. Neste sentido, hoje as autarquias têm mantido uma preocupação louvável, no sentido de “tirar da solidão” gente que, de outra forma, não tem capacidade para respirar o ar puro das nossas maravilhosas estradas. Penso que é importante deixar um testemunho o mais fiel possível do nosso tempo para as próximas gerações.
Leva-me este aparte a recordar uma pequena reportagem vídeo que há cerca de dois anos uma jovem realizou sobre os Ginetes e onde dizia que o primeiro automóvel apareceu nesta terra no ano de 1960. Mesmo se me perturbou um pouco tal afirmação preferi reduzir-me ao silêncio pois não sei para que fim realizou tal trabalho. Na década de 40 era demasiado pequeno para me recordar, mas nos anos 50 sempre conheci automóveis nos Ginetes. O padre Evaristo tinha o seu e, por cá, existia mais uns poucos. Há muito que guardava para mim este lapso que não prejudica a vida de quem quer que seja mas a história da minha terra tem de ser escrupulosamente feita da verdade.

 Na família?  
Como no início referi, éramos uma família composta por 6 pessoas em que o meu pai, era o grande chefe, paradoxalmente de estatura pequena, mas muito inteligente. Não era violento, mas com um simples olhar mantinha o respeito. Tinha uma profissão complicada que não permitia férias nem mesmo beneficiar totalmente de fins-de-semana com a natural, necessária e benéfica tranquilidade. Encontrava sempre algo para se ocupar. Não era o género de pai disponível para distribuir “beijinhos”, mas sei que amava muito a minha mãe e os filhos.
A hora da refeição era sagrada. Toda a família sentada à mesma mesa, conversávamos um pouco de tudo, mas era ele quem dirigia o diálogo. Se havia algo, como sucede em todas as famílias, que não concordava com a minha mãe, não admitia que nós os filhos nos intrometêssemos no diálogo. Dizia imediatamente “cala-te que não são contas do teu rosário”. É um assunto que apenas diz respeito a mim e à tua mãe. Quando cresceres compreenderás, o que não consegues agora”.
Ninguém se sentava à mesa com boné a tapar a cabeça, como vemos tantas vezes nestes tempos de liberdade. Exigia que se pretendesse levantar-me antes de todos terem terminado a refeição que “pedisse autorização”, o que pela minha teimosia me valeu algumas vezes ter de estar sentado demasiado tempo para o meu gosto, esperando que todos terminassem, mas era uma norma imposta por ele e dela não abdicava.
Depois de ingressar no Seminário, olhava já para mim de uma forma diferente pois a seus olhos, como mais velho dos meus irmãos, sentia que deveria ser um exemplo para eles e que tal não podia falhar. Curiosamente, embora crente ,não era de “beatices”. Nos últimos anos de vida, meu pai transformou por completo a sua religiosidade e no Canadá, para onde emigrou em 1966, pertenceu mesmo a alguns movimentos da Igreja, sobretudo nos últimos anos de vida e após o início da merecida reforma. Como abandonei o Seminário e após cumprir o serviço militar obrigatório, fui juntar-me à minha família no Canadá e 18 meses depois voltei para casar com a mulher que há mais de 50 anos faz parte de mim e se encontra a meu lado para nos sofrermos mutuamente, o que é encarado como uma grande aventura e coragem pois sabemos muito bem as várias crises que “assaltaram” as famílias causadas pela ruptura do casamento. Não é uma crítica, pois também na minha família é uma realidade que não escondo, mas algo que perdeu a importância que merece e já visto com a maior naturalidade. É evidente que tentei com minha mulher educar os nossos filhos da mesma forma que fomos educados no “nosso tempo”. Uma pura ilusão para qualquer casal que pretenda fazer o mesmo. Sou pai de 3 filhos. Infelizmente 1 rapaz sobreviveu apenas 9 meses em consequência de uma gravidez de risco de que foi vítima minha mulher. Restam-me 2, uma rapariga já com 49 anos e um rapaz que dentro de 1 mês fará 43, que são e serão sempre o meu orgulho tal como da minha mulher mesmo se nem sempre partilhamos ideias e formas de viver semelhantes. É o bem mais precioso que possuímos, a quem procurámos sempre dar o melhor e haja o que houver na vida, a porta do pai e da mãe está sempre aberta.  

Nos amigos?  
Ninguém é capaz de viver totalmente só e sem amigos.  Conheci e conheço ainda muita gente que fez parte do meu universo de amizades como criança, na escola, no Seminário, no trabalho, etc. etc. Hoje, com a idade, o contacto pessoal não é tão frequente como outrora. Sinto muitas vezes saudades de grande parte dos meus amigos que o tempo, a emigração e a morte separaram. As verdadeiras amizades do passado permanecem mesmo se a vista não as vê, mas o coração sente. Até aqueles que já partiram para outra dimensão da vida, alguns deles sepultados no Cemitério dos Ginetes fazem-me apreciar o que ainda possuo com alguma importância que é o dom da vida. Gosto de amigos sinceros mesmo que, delicadamente, me façam saber que não concordam comigo. No passado, as amizades, normalmente, nasciam do compromisso que orgulhosamente aceitávamos de ser parte activa no seio de uma comunidade. A própria escola que nos proporcionava desde criança excelentes ocasiões de fazer amigos hoje perdeu talvez essa forma de conviver que nos unia tendo por base o respeito pelos nossos professores, mas igualmente pelos amigos. Não é culpa dos docentes que, muitas vezes desmotivados, se resumem a cumprir ordens escritas que lhes retiram parte do poder que lhes era outrora confiado e da motivação que os levou a escolher uma profissão tão digna, que é ensinar, e até por vezes realizar um trabalho que deveria ser assumido pelos pais que “não têm muito tempo”, dizem eles. Infelizmente, as crianças são em muitos casos “depositadas na escola” e o professor se desenrasque. Temos uma imensa falta de verdadeiras lideranças e referências credíveis que, como outrora, consigam impor especial respeito nas nossas Comunidades. Os “velhos como eu” estão saturados e os jovens deixaram de acreditar.

A relação com a internet?  
A relação com a internet veio revolucionar por completo as nossas vidas. É verdade que foi uma grande descoberta que hoje, mesmo os idosos, como eu, já estão habituados a utilizá-la com alguma frequência, já não conseguiriam viver sem este novo mundo que se abriu à comunicação. Todavia, é esta a minha opinião, evoluiu demasiado rápido. Contribuiu, em muitos casos, para a falta de diálogo frente a frente, que alterou alguns hábitos tidos como sagrados no seio das famílias. Apareceu uma inesperada pandemia que contribuiu ainda mais para desenvolver este meio de comunicação a partir do domicílio.  Pessoalmente, tenho conseguido orientar a minha vida de “reformado”, mas sei que a maioria dos que fazem parte da minha geração enfrentam, por vezes, problemas complicados porque precisamente não os conseguem resolver. As videoconferências são uma realidade que têm a magia de virtualmente unir amigos e famílias e tal é inegavelmente maravilhoso sobretudo para quem vive num espaço tão isolado como nas ilhas dos Açores.
Recordo-me que quando nasceu a minha filha no Canadá, há mais de quarenta e nove anos, nunca consegui comunicar telefonicamente para os Açores, mais precisamente os Ginetes, para transmitir aos meus sogros a grande notícia que esperavam ansiosamente. Só foi possível fazê-lo por escrito, o que cá chegou provavelmente uma semana depois, como era habitual na altura. Hoje está tudo ao alcance de um pequeno aparelho que em poucos segundos nos coloca “cara a cara”.
Quanto às novas gerações, surpreendem-me constantemente pela facilidade com que utilizam esta ferramenta que, quer queiramos ou não, parece desde muito cedo não ter qualquer segredo para os jovens, alguns ainda de tenra idade. Aos pais compete estarem constantemente vigilantes e, se necessário, algumas vezes controlar a utilização. Na vida existem momentos a respeitar para tudo.

A filha que queria ser independente aos 18 anos

 A relação com os filhos?  
No passado, a relação com os meus filhos tenho a consciência da minha parte tudo ter feito para que fosse a melhor embora reconheça que não perfeita. Nasceram no Canadá. No início queria, provavelmente, imitar o meu pai, mas depressa constatei que na altura, vivendo num país diferente, tal não era completamente possível. Estava demasiado tempo ausente durante o dia por motivos profissionais para poder seguir todo o desenvolvimento da sua adolescência. Em contrapartida, minha mulher trabalhava na nossa casa para a mesma companhia onde me encontrava igualmente. Direi que quase fazíamos parte da família dos nossos patrões. Foi uma mais-valia a presença da mãe pronta a receber os nossos filhos quando terminavam a escola. Todavia, sempre existiram princípios dos quais não abdiquei e a liberdade que por vezes eles próprios me diziam que os amigos da mesma idade beneficiavam, respondia que tal não me dizia respeito. Nunca lhes faltou uma boa refeição ao contrário do que sucedia no seio de famílias “desfeitas” de gente que bem conheciam. Como grande parte dos jovens, espero que a minha filha me perdoe a indiscrição, mas não me impeço de contar uma pequena história que nunca esquecemos. Em vésperas de completar 18 anos dizia-me: “papá vou fazer 18 anos brevemente, por tal já terei o direito de sair sozinha”. Apenas sorri…nada mais. No dia seguinte à comemoração do seu aniversário perguntei-lhe: “Já te viste ao espelho?”. Não compreendendo onde queria chegar, foi mesmo colocar-se diante do espelho à procura de algo que provavelmente não estivesse bem com a roupa que vestia. De volta retorquiu: “nada vejo…que se passa?” Nesse momento sorri para ela e perguntei: “Sabes bem que ontem comemoraste os teus 18 anos e queria que me mostrasses a diferença que encontras hoje”. Aí recordou-se do que me tinha dito e apenas sorriu. Continuou a fazer a sua vida como antes até decidir ser ela a primeira a vir para os Açores. Quanto ao meu filho, que decidiu regressar ao Canadá, sempre respeitei a sua decisão, sabendo bem que nada o impede igualmente de, sempre que desejar, bater à porta, como várias vezes já fez, para visitar os seus pais.

A relação com os netos?
Na minha idade é o que considero de mais precioso nas nossas vidas. É viver a paternidade duas vezes, uma sensação estranha que não incomoda, mas que refresca a consciência da grande caminhada de vida percorrida e de que realmente o tempo não descansa e os anos se acumulando levando-nos a caminhar para uma nova forma de viver. Tenho uma excelente relação com as minhas netas, pois quis o destino que o sexo feminino fosse exclusividade desta nova geração familiar que me pertence, assim como à minha mulher. Falamos um pouco de tudo, incluindo de sexualidade, um tabu no meu tempo de adolescente assim como, estou certo, o era e ainda é no seio de grande parte das famílias. São as minhas netas directas e sinceras. Podemos falar de tudo excepto de política que, infelizmente, para meu desespero, parece não ser matéria interessante para elas. Telemóveis ou computadores descontrolados antes de visitar um profissional na matéria são as primeiras conselheiras. Nasceram envolvidas nas novas tecnologias. Não me ofendem mesmo quando me repetem: “Avô parece que já estás tarouco”. É evidente que, na minha idade, o melhor é escutar e sorrir. Sabem que não me ofendo porque se decidir responder fá-lo-ei da mesma forma. Estou certo que, na realidade, se preocupam comigo e igualmente com minha mulher. É o maior conforto que nos podem dar.  

O modo de vestir?  
Ao contrário do que já ouvi numa estação de rádio pela voz de alguém que nem nasceu nesta terra, nunca foi proibido o uso da mini-saia no tempo do fascismo. É verdade que, durante muito tempo, senhoras como a minha avó usavam longos vestidos negros que se estendiam até aos pés, mas porque provavelmente se sentiam melhor protegidas do mau tempo. Recordo-me quando estive emigrado, um dos meus irmãos me chamar a atenção num casamento dizendo com alguma ironia: “Estás a ver como a nossa avó já estava na moda há muitos anos, pois estas senhoras ainda jovens que aqui vemos usam precisamente o modelo que há muito na nossa terra era moda”. Hoje não vejo grande diferença do que se usava naquele tempo, provavelmente porque para a moda não tenho um sentido de observação refinado.

A alimentação?  
Pessoalmente, nunca encontrei grandes diferenças. A minha mãe foi uma excelente cozinheira e a minha mulher igualmente possui o mesmo dom. O que durante muito tempo chegou a ser considerada comida do pobre, como, por exemplo, o chicharro, hoje faz parte da mesa de toda a gente. Sei que a carne não estava ao alcance de todos. Pão fabricado com farinha de trigo era um luxo para a grande maioria pois como terra de agricultores era sobretudo o pão de farinha de milho era o de maior consumo nesta terra.
Para testemunho de tudo isto basta observar os vários “moinhos de vento” que ainda existem por aqui em ruínas e a recordar um passado em que nem tudo era mau mas que o tempo tranquilamente transformou.
                                                                    

J.P.

 

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Autor: CA

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