Correio dos Açores teve acesso ao caderno de encargos

Governo admite que estudo sobre o transporte marítimo de mercadorias defina uma verba a pagar pela Região/Estado numa alternativa ao modelo que está em vigor nos Açores

 A empresa VCDuarte, Lda., que está a fazer o estudo sobre o transporte de mercadorias nos Açores, tem no seu objecto “o comércio a retalho de relógios e de artigos de ourivesaria e joalharia, em estabelecimento especializados”, tal como refere o Grupo Parlamentar do PS num requerimento ao Governo dos Açores, mas a empresa também está vocacionada para “actividades de consultadoria para os negócios e a gestão; outras actividades de consultoria, científicas, técnicas e similares” tal como também o “comércio a retalho de computadores, unidades periféricas e programas informáticos, em estabelecimentos especializados.”
A sociedade por quotas tem como sócios o gerente Valter Manuel do Carmo Duarte e Ana Cristina Ramos Nunes Póvoas Duarte.
 São estas actividades que a empresa desenvolve e que fazem parte da documentação que apresentou ao Governo dos Açores que, face a este objecto e ao passado dos dois sócios, entendeu adjudicar o estudo à CVDuarte, Lda., isto apesar do requerimento dos deputados socialistas Carlos Silva, João Vasco Costa, Berto Messias, José Ávila, Isabel Teixeira, Tiago Branco e José Eduardo, entender que o sócio Valter Duarte é ex-adjunto do gabinete do então Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, do Governo PSD/CDS, Miguel Castro Pinto Luz, actual Vice-presidente do PSD.
Estas ligações poderiam ter alguma relevância se estivessem na base da escolha de um dos três concorrentes que inicialmente surgiram a levantar o caderno e encargos para a elaboração do estudo sobre o transporte marítimo de mercadorias nos Açores. Mas o facto é que, ao longo do processo, - como demonstram os documentos disponibilizados pelo Governo dos Açores – os outros dois concorrentes MMoura Consultores Associados Lda.  e Trageo, Estudos e Projectos de Transportes, apesar de levantarem o caderno de encargos, não apresentaram qualquer proposta dentro dos prazos previstos. Razão porque o júri presidido por Fernando Ferreira com os vogais Octávio Moreira da Silva e Patrícia Almeida só terem de verificar se toda a documentação da empresa CVDuarte, Lda. (que entrou no prazo 4 de Setembro pelo valor de adjudicação de 69.980 euros), estar de acordo com o caderno de encargos, o que se verificou.

O caderno de encargos

Segundo o Caderno de Encargos, o estudo terá que se basear nos regimes jurídicos Europeu da Cabotagem, Nacional da Cabotagem e do Tráfego Local, e fazer uma caracterização da situação actual em termos de carga por ilha (importação/exportação, carga por ilha (mercado local), operadores, navios, rotas, horários, número de escalas semanais/anuais por ano e por ilha.
Terá também que determinar os “tempos de percurso para cada ilha, com a indicação do prazo médio de entrega da mercadoria, desde o expediente ao cliente final, preços do frete, custos anuais de operação por ilha, identificar as rotas deficitárias e respectivos custos e análise ao cumprimento das obrigações de serviço público em vigor”.
Segundo o caderno de encargos, agora divulgado, o estudo tem que pormenorizar “como funciona o regime de cabotagem insular noutros países europeus, em situações que possam ser comparáveis à Região e o estudo de modelos alternativos, acompanhados do respectivo estudo de viabilidade económica e impacto na comunidade portuária e logística, bem como na economia de cada ilha”.
No caderno e encargos está estabelecido igualmente que o estudo “deveria ser feito num regime de liberalização total; e obrigações de serviço público sem compensações por parte da Região/Estado”.
O caderno de encargos pede que se crie como subcenários “a existência de obrigações de serviço público com compensações por parte da Região/Estado; além de outros modelos”.
No caso de os modelos apresentarem “a solução de baldeação de mercadoria entre cabotagem insular e tráfego local e vice-versa, deverá ser aferido se tal solução implicará um aumento no tempo de chegada da mercadoria ao destino final em comparação com o modelo actual”.
Em termos de tráfego local, o caderno e encargos solicita que o estudo identifique  as  limitações dos armadores de tráfego local para operar, sem restrições, no transporte marítimo de carga em todo o território regional e as suas implicações nas empresas de estiva regionais.
Entre outras obrigações, apresenta como recomendação que o estudo refira qual o modelo “mais adequado para cumprir os objectivos da Região e cumprir com os requisitos obrigatórios”.
O prazo de execução do estudo é de 240 dias admitindo-se a prorrogação por 30 dias.

A opinião do Governo de Coligação

Segundo o Governo dos Açores, o actual modelo de transporte marítimo de mercadorias “assenta num paradoxo de interesses, pois, por um lado, existem os retalhistas e produtores que querem mais frequências e regularidade e, por outro lado, existem os armadores que querem um transporte marítimo mais eficiente e com menores custos, dado que efectuam o serviço de cabotagem insular numa base meramente comercial e sem qualquer tipo de subvenção pública”.
 Na prática, entende o Governo que o modelo actual “restringe a política comercial dos armadores, pois cria pouco incentivo à prática de uma política de preços diferenciada e promove as escalas articuladas, por via da inevitável necessidade de uma subsidiação cruzada entre diferentes percursos, porquanto qualquer operador, para poder cumprir com a obrigação de determinado número de escalas e ainda com a prática de um preço uniforme, terá de obter margens adicionais em determinados percursos que garantam a cobertura das perdas ocorridas noutros trajectos”.
No âmbito do modelo actual, segundo o Governo dos Açores, “dominam os objectivos de natureza equitativa e de coesão social no espaço regional, relegando-se para segundo plano os objectivos de eficiência na afectação de recursos. Destaque-se o facto de a sua concepção assegurar como garantia, o facto de que todas as ilhas, independentemente da sua dimensão e do tráfego que possam gerar, serem adequada e eficazmente servidas”.
O Executivo açoriano admite que o modelo existente tem “a virtude de conciliar, de forma satisfatória, os interesses das diferentes ilhas e dos armadores, permitindo o abastecimento regular das ilhas mais pequenas, que atenta a sua dimensão, não teriam a frequência que hoje têm, sem qualquer custo para o erário público”.

“Principais problemas” do modelo

Entre os principais problemas do actual modelo de transporte marítimo de mercadorias, são apontados “a baixa frequência para as ilhas de menor dimensão, associada à ausência de economias de escala; a falta de previsibilidade, principalmente nos primeiros meses do ano, altura em que se verificam as imobilizações técnicas dos navios, que muitas vezes são acompanhadas por condições atmosféricas adversas que impossibilitam o cumprimento, por parte dos armadores, dos itinerários previamente publicados;  e constrangimentos no transporte do gado vivo; além da falta de capacidade de frio”.
Um dos problemas que o Governo dos Açores aponta é que o preço do frete “é alto”. E considera “importante destacar que, nas ilhas de menor dimensão, muitas das queixas, relativas aos atrasos, estão associadas aos transitários e não aos armadores, pelo que grande parte dos problemas poderão estar na logística e não no transporte propriamente dito”.
Outro aspecto a destacar “prende-se com o facto de se perspectivar um aumento bastante substancial da regulamentação ambiental no sector marítimo (“pacote fit for 55”), o que fará aumentar os custos dos armadores. Este facto vem reforçar a relevância da eficiência do sistema de transporte marítimo”, refere-se.

“Aspectos a melhorar no modelo”

É objectivo do Governo com a avaliação do actual modelo de obrigações de serviço público nas ligações com o continente, “o propósito fundamental de reduzir os preços e melhorar a regularidade do serviço, equacionando em simultâneo a existência de uma carreira regular de carga inter-ilhas, que permita assegurar o transporte de bens com uma regularidade, previsibilidade e custo adequado, potenciando o serviço de transporte marítimo de mercadorias a todas as ilhas e reduzindo os custos de contexto no modelo global marítimo da Região”.
Neste contexto, o Executivo açoriano “pretende que o estudo aponte soluções para a problemática do transporte de gado vivo e de produtos perecíveis, bem como para as lacunas de âmbito logístico”.
Em suma, a Região pretende “transportes frequentes, com custo competitivo, para promover o interesse no desenvolvimento de iniciativas de produção especializada nas diversas ilhas, o que só pode ser alcançado se for assegurado o escoamento das produções”.
São apresentadas algumas “condicionantes a respeitar” nos modelos a estudar pela empresa e que são considerados “requisitos obrigatórios”.

Condicionantes do estudo

O primeiro condicionante é que continue a existir “preços iguais para todas as ilhas”.
 A solução a encontrar tem que se manter o tempo de percurso máximo entre continente e cada ilha que existe nas actuais obrigações de serviço público, ou seja, o tempo de demora entre origem e destino das cargas não ultrapasse sete dias úteis.
De referir que tal “consubstancia uma obrigação de âmbito logístico e não apenas de transporte. O número de escalas mínimas por semana em cada ilha: semanal em vez do actual. E pretendem-se escalas semanais a todas as ilhas, mantendo as três escalas semanais às ilhas de S. Miguel e Terceira, conforme é praticado actualmente”.
O Governo dos Açores considera que “não é aceitável que”, na solução a apontar no estudo, “as ilhas tenham menos escalas do que têm actualmente. Inclusive, pretende-se que as três ilhas (Santa Maria, Graciosa e Flores), que apenas possuem escalas quinzenais, o tenham com periodicidade semanal, directamente do continente ou através de baldeação”.
Poderá ser considerado no estudo “um modelo de pagamento por parte da Região Autónoma/Estado aos armadores de compensações por cumprimento de Obrigações de Serviço Público”. Neste contexto, o estudo “poderá apontar para diversos cenários de optimização e resolução dos problemas existentes, com a consequente contrapartida por parte da Região”.

 O requerimento do PS

O requerimento dos deputados do PS começa por fazer um histórico do processo. A 11 de Julho do corrente ano, o Governo Regional de coligação PSD/CDS-PP/PPM, através da Secretaria Regional do Turismo, Mobilidade e Infraestruturas, informava no respectivo portal que já tinha sido lançado o procedimento de ajuste directo para a aquisição de serviços de “Elaboração de Estudo sobre o Transporte Marítimo de Mercadorias na Região Autónoma dos Açores”. O procedimento tinha um preço base de 70 mil euros, acrescido de IVA à taxa legal em vigor, e um prazo de execução de 240 dias, “tendo sido convidadas empresas especializadas na área dos transportes marítimos”, revelou o Governo Regional.
O requerimento faz, depois, uma relação dos pressupostos da decisão agora tomada com outra decisão de adjudicação do estudo de Julho do ano passado (2021) que “viu os respectivos trabalhos suspensos para incorporar sinais relevantes relativos aos contributos dados por vários agentes, mas que não seria orientado para determinadas soluções”.
Os deputados do Grupo Parlamentar do PS/Açores relevam o facto de a empresa que ficou agora responsável pelo estudo ser uma sociedade por quotas, “constituída há 4 anos, que tem no seu objecto social actividades como de consultoria em informática ou de relógios, ourivesaria e joalharia” quando, pelos documentos disponibilizados agora, o objecto da empresa vai muito para além destas actividades.
Também realçam os deputados socialistas açorianos no requerimento que a empresa “tem como um dos sócios, Valter Duarte, ex-adjunto do gabinete do então Secretário de Estado das Infraestruturas, Transportes e Comunicações, do Governo PSD/CDS, Miguel Castro Pinto Luz, actual Vice-presidente do PSD”. Isto quando a CVDuarte, Lda. foi a única das três empresas que levantarem o caderno de encargos, a apresentar uma proposta que, segundo o júri, estava de acordo com o caderno de encargos.
                                     
                                      

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Autor: João Paz

Categorias: Regional

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