Pertenço a uma geração cujas idades se situam entre os 88/90 anos, o que dizer que já fizemos uma travessia que abrangeu dois séculos, não de vida plena, mas de etapas, ao longo das quais acompanhamos e, decerto, devíamos ter «interferido» nas que nasceram a partir da década de 50 até hoje, pois há filhos, netos e até bisnetos que, nos nossos dias, se interligam numa sociedade onde se continua a apelar para que todos possamos viver em proximidade, em diálogo e sempre em reconciliação com o próximo, sobretudo os idosos e os abandonados.
Da parte que me toca, até aos finais da década de 40 e princípios de 50, integrado na família que foi o meu berço, ainda dizia «Pai, a sua bênção»!
Pedia licença para ir ao cinema ou a alguma festa mais prolongada, ter a chave, abrir a porta e anunciar: já cheguei, de modo que a noite continuasse em tranquilidade e paz de espírito.
E, no quotidiano, íamos conjugando a nossa vida em família através do recebimento dos testemunhos dos nossos pais e avós; e, no liceu, ajudados com a sabedoria dos mestres, até completar o curso-geral, com vista ao previsto ingresso na escola do magistério primário.
Outros dos meus colegas continuaram o curso geral de letras e/ou de ciências, para prosseguirem estudos universitários ou então conseguirem um emprego em empresas privadas com representação local e regional, algumas vezes geridas pelos próprios familiares.
Assim, terminámos, o «2º ciclo» duma carreira académica, iniciada na escola primária, precisamente quando, em Fevereiro de 1953, o Liceu de Ponta Delgada assinalava o centenário da sua criação, promovendo um conjunto de festejos que marcaram lugar muito destacado na vida cultural citadina, num acto de despedida que nos tocou profundamente e que ainda hoje recordamos com saudade.
O Coliseu e o ‘Cine Jade’
Sempre cultivei a amizade e a camaradagem com os meus colegas e, porque não éramos sequer um milhar (de ambos os sexos), todos nos conhecíamos, éramos como da mesma idade, até quase do mesmo ano e nunca vi separações sociais que me chocassem, pois essas só eram mais evidentes fora dos portões do Liceu, através de sociedades de cultura e recreio particulares que funcionavam em Ponta Delgada.
Contudo, no acontecimento do ano - os bailes do Coliseu, éramos iguais na convivência social - tanto com professores e famílias - o mesmo sucedendo nos serões promovidos no Ginásio pela Academia Musical e nas récitas que o Liceu organizava no fim de cada ano escolar.
Assistimos ainda ao nascimento do «Cine – Jade», numa feliz iniciativa do Dr. Augusto Arruda que, como nos grandes meios, passou a realizar matinés aos dias de semana, juntando rapazes e raparigas como não seria possível de outra forma, o mias longe possível do olhar atento dos pais…
E, logo em frente, nos baixos da Câmara Municipal também se abriu o «Café-Jade», onde através duma aparelhagem mágica trazida da América, permitia ouvir em discos previamente seleccionados e pagos, as mais belas orquestras do mundo da música ou então os mais notáveis cantores.
Ali começou a juntar-se um grupo de «jovens intelectuais» que, também colaboradores da página de letras do Jornal «A Ilha», iniciaram uma nova tertúlia na evocação e aproximação dos nossos poetas e literatos; e, alguns, por se situarem fora do contexto político nacional, permaneciam como que no «índex», o que começou a criar alguma fricção política não habitual. E, dos que estão felizmente ainda por aqui, saúdo efusivamente o Professor Doutor Eduíno de Jesus.
O «canto» do Clube e o Café Central (anos depois com os bilhares, mas que encerravam às 21 horas) eram outros dos nossos pontos de referência e também o fixar de tantos olhares, nos primeiros e por vezes definitivos namoros, alguns concorrendo para a democratização de classes, aliás um fenómeno que nos nossos dias, felizmente, é já tão comum.
A bata “tornava todos iguais”
E, uma nova vida desponta quando iniciei funções docentes em 7 de Outubro de 1953, na escola masculina de Santa Clara, numa única sala que trabalhava em desdobramento, de manhã e de tarde, para poder acomodar todos os alunos…
Perante o quadro que se desdobrava aos meus olhos, (com 50 alunos da 1ª e 4ª classes), comecei a pensar que duas coisas eram essenciais: proximidade e esperança, sobretudo para com os mais frágeis.
A aquisição de livros, sobretudo para os da 4ª classe, era uma situação nem sempre fácil de resolver, por falta de posse dos pais. Daí que, por vezes, era preciso recorrer a manuais já servidos de familiares; e era a «pedra» ou «lousa» com o apoio do quadro preto e do giz, a forma mais corrente de escrever e facilmente apagar-se para que nova lição surgisse.
Da 1ª à 3ª classe - para o ensino da leitura e já contendo elementos para o conhecimento da aritmética e da história de Portugal - havia os chamados «livros únicos» editados pelo Ministério da Educação que, através dum fundo próprio, enviava anualmente alguns manuais para que as escolas distribuíssem pelos alunos com maiores necessidades económicas.
Os professores mais antigos, acostumados sobretudo ao ensino da 1ª classe com a orientação da Cartilha Maternal de João de Deus, utilizavam-na «às escondidas», mas com bons resultados, porquanto era obrigação só utilizar o livro único.
Através da caixa escolar e a ajuda de algumas famílias com melhores posses era possível comprar cadernos de papel com ou sem linhas para a caligrafia, o ditado e a redacção, com a ajuda do lápis da marca «Faber» por ser o mais resistente…
A bata era a indumentária que tornava todos iguais, mas nas suas caras sempre sobressaía que esse gesto de conforto só era mais conseguido com uma palavra amiga do professor…
É que os problemas provenientes desse confronto com a vivência do dia-a-dia, teve muito a ver com a situação político/social do país e também da que se passava nas então ilhas adjacentes, naquilo que considero possa ter resultado das franjas económicas que ainda resultavam da ressaca da segunda grande guerra, quer em dificuldades de trabalho sustentável, quer na falta de alargamento duma cultura popular que superasse o analfabetismo que, infelizmente e passados estes anos ainda por aí anda, mas diferente na sua postura social, pois é já resultante de outros factores…
Daí que os que puderam e souberam cuidaram de si e da família; mas outros demandaram o Canadá e a América, constituindo comunidades sólidas, com filhos e netos capazes de atingirem níveis sociais e educativos, por encontrarem novas fontes de desenvolvimento ao seu alcance.
Dez anos entre escolas
da cidade ao mundo rural
Enquanto exerci, durante dez anos, funções docentes, pude percorrer escolas da cidade, de freguesias circunvizinhas e uma até muito rural. Em todas aprendi que era pela força do trabalho braçal ou doméstico bem orientado, que se superaram muitas das dificuldades do dia-a-dia, mas onde por vezes o alcoolismo já tinha antecedentes que traziam a miséria e os maus tratos…
As pequenas hortas cultivadas nos quintais à volta das casas, era o recurso diário para a substancial «sopa do dia», base de uma boa alimentação por ser cheia dos conteúdos vegetais que hoje se recomendam… e, à solta, havia sempre uma grande produção de galinhas que davam ovos…
Um novo «ciclo» do ensino obrigatório surgiu no início da década de 60, com o alargamento até à 4ª classe, incluindo a do sexo feminino; e, se esta medida constituiu uma conquista educativa, foi também mais um problema social, porquanto era preciso que as famílias aceitassem que as raparigas, até então mais disponíveis para «iniciar» uma participação na vida da casa, (sobretudo no acompanhamento dos irmãos mais pequeninos), voltassem à escola, mas já a usar um vestuário mais consentâneo duma pré-adolescência.
Mas tudo se resolveu, muitas vezes com a ajuda de tantas «barricas» vindas da América… ou com a participação «escondida», mas sempre acolhedora, de muitas professoras que até rejubilaram pelo facto de ver alunos e alunas terem a vantagem de continuar estudos.
A “Revolução Pacífica
do Ensino” de Veiga Simão
Em Julho de 1968, é criado o ciclo complementar do Ensino Primário, alargando-se a escolaridade obrigatória para mais dois anos: a 5ª e a 6ª classes, mas com a possibilidade dos alunos que a frequentassem poderem enveredar no novo ciclo preparatório do ensino secundário.
Dois projectos pedagógicos destinados ao mesmo fim, mas que continuavam dependentes da capacidade económico/social das famílias, porquanto as de menores recursos continuavam nas escolas dos seus próprios lugares de origem, enquanto outras se deslocavam até à escola preparatória mais próxima…
Mas, mais uma vez, a «segurança» da aprendizagem ministrada pelos professores do ensino primário sobrelevou esse problema, pois a formação que receberam esses alunos sempre os creditou para a total integração no ciclo preparatório oficial.
Mas um primeiro e mais renovado tempo de transição geracional surge a partir da década de 70, precisamente quando o Ministério da Educação é gerido pelo ministro Veiga Simão, que foi o maior ideólogo da chamada «Revolução Pacífica no Ensino», encetada no governo marcelista. Mas também houve – sempre mais um «mas», por coincidir com o momento difícil que atravessava a politica portuguesa minada pela guerra colonial.
Contudo, após uma primeira discussão política, mas já com foros democráticos feita em todo o país e nas ilhas adjacentes, com a intervenção de entidades e pessoas de variadas correntes políticas sociais e educativas, surgiu a almejada «Lei de Bases do Sistema Educativo».
E, assim, chegamos à geração dos meus filhos, que foi bem mais diferente das que me antecederam ou precederam, sobretudo quando a obrigatoriedade se alargou aos ensinos preparatório e secundário, se criaram ajudas de apoio às famílias; e, por último, novas universidades, abrangendo os Açores e a Madeira.
O 25 de Abril “vencedor”...
… E o 25 de Abril acontece quando terminava o meu curso de inspector-orientador, mas com o Movimento dos Capitães, vencedor, a planear a Revolução, com todos os valores e consequências que esse acontecimento veio a ter na vida nacional, sobretudo na «nova» condução dos seus destinos político/ educativos: aliás, aquele tempo de certezas e de incertezas que por vezes se cruza em todos os países onde esses movimentos ocorrem.
Foi como que começar do «zero», mas também ajustado a alguns projectos de continuidade que tentassem diluir, mas de forma progressiva, a acção política, social e pedagógica das escolas e das instituições administrativas e de orientação pedagógica.
Apareceram os primeiros programas oficiais, a começar pelo ensino básico e, com o andar do tempo – sempre limitado para o muito que havia a fazer – são criadas as Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e os respectivos órgãos de governo próprio.
E, o partido que chegou primeiro e convenceu o povo na primeira eleição democrática com o seu programa de acção e «reabilitação» política formou governo e iniciou a nova «conquista» autonómica, pondo a funcionar toda uma máquina administrativa, social e educativa, com as naturais dificuldades de aceitação por parte do secular «suporte paterno», mas que sucessivamente se foi compreendendo…
Então para as gerações actuais – que já trabalham e constituíram família - abriram-se novos destinos, novas formas de agir e de comunicar, de participação na vida política… e tudo também veio a reflectir-se na escola pública que, por facilitismos ou faltas de dever cívico de cada um dos intervenientes, comprometem a aprendizagem e até aquela falta de serenidade ou de entre - ajuda, trazendo algum desconforto na comunicação com os professores, desses com as famílias, até na forma de vestir…
Daí que, os que ainda «cuidam» dessas gerações – pais e avós - penso que continuam – mesmo em surdina – a pensar tal como viveram a sua vida, mas vão aceitando os tempos que correm, por vezes movidos com aquele sentido de aventura e de oportunidade que surpreende e também nos faz interrogar: onde vai isto tudo parar?
Mas, continuo a manter a convicção de que, às vezes, também é preciso recontar aos jovens «estórias» dum passado que não gostam de ouvir, por ser demasiado moralista, mas que se for reflectido os ajudará - no tempo próprio - a superar os percalços que ocorrem no dia a dia, evitando que outros que já vislumbram no horizonte, não aconteçam, pois se assim for tudo se tornará numa encruzilhada civilizacional.
...com ‘variações’ mirabolantes…”
Na sociedade hoje discute-se, para além dos problemas sempre ligados ao alcoolismo, também a droga e o sexo nas suas «variações» mais mirabolantes… e tudo se transmite nas escolas, na sua disciplina, no respeito pelos direitos e deveres de cada um!
Admiro e acompanho muito do que se tem feito e conseguido através duma complementaridade de valores que envolva ensino/ educação e até a cidadania, uma vez que numa sociedade de valores laicos, a disciplina de Educação Religiosa, Moral e Cívica que era um dos suportes da minha geração, não parte – nessa dimensão – do currículo escolar.
Como professor, que só me aposento quando passar para o «novo mundo», continuo a acreditar nos valores da juventude, mas também na grande aposta duma educação plena que envolva família/sociedade, mas que ainda não foi alcançada…
Já se conseguiu chegar a um momento histórico - «impor» a velha cartilha e os próprios livros escolares aos manuais digitais!
Eu, por mim, – e tenho pena – já não assisto à sua avaliação, mas as novas gerações que já serão a partir dos meus bisnetos vão ter que se cuidar com essas conquistas e, sobretudo, assumir que serão os «novos» responsáveis por tudo o que é a credibilidade colectiva e pessoal.
Como diz o Cardeal Tolentino de Mendonça «há que escutar a própria sede como aspiração profunda do homem como o rio de água viva que saí do trono de Deus».
Felizmente que ainda sou do tempo que a comunicação com a vida Divina fazia parte de nós mesmos, mas parece que até isso se vai esvaindo… e os meios digitais, incluindo a televisão, vão na vanguarda!
Fajã de Baixo, 29 Setembro de 2020
Subtítulos e segundo título
da responsabilidade da Redacção