Correio dos Açores: A par da sua carreira enquanto violoncelista, passou também a estudar direcção de orquestra. Como se deu esta transição?
Henrique Constância: Na realidade, tem sido mais uma continuação do que uma transição. A direcção de orquestra era algo que já queria fazer há algum tempo, mas fui levando aos poucos até que agora é grande parte da minha vida. O violoncelo continua sempre presente em casa e no palco. Vejo isto como uma continuação da minha formação como músico.
Considera possível dedicar a sua carreira por inteiro à direcção de orquestra ou pretende continuar a evoluir igualmente no violoncelo?
Para já tem sido possível manter as ‘duas vidas’, algo que requer alguma organização (e pouco descanso). Continuo a tocar regularmente com o Mankes Piano Quartet e com a Orquestra de Câmara Portuguesa, grupos que me dão imenso prazer de fazer parte. Enquanto conseguir manter o violoncelo e a direcção vou me sentir sempre um músico realizado.
É o primeiro açoriano com o papel de maestro nas orquestras que dirige?
Nas orquestras por onde tenho passado penso que sou o primeiro açoriano, mas a nível internacional não sou o primeiro e, certamente, não serei o último. Temos o grande exemplo do compositor e maestro de São Jorge, Francisco de Lacerda, que teve uma notável carreira internacional no inicio do século XX. Curiosamente, dirigi recentemente, num concerto em Amsterdão, uma peça de Claude Debussy baseada num tema do compositor açoriano, obra que ele dirigiu várias vezes em concertos. Saber que este músico açoriano teve uma grande carreira há 100 anos atrás e que teve contacto com a ‘elite’ musical da época, é algo realmente inspirador.
De que forma o facto de ter crescido entre músicos fez com que se tornasse músico também?
Especialmente pela constante motivação, pelo apoio nas minhas escolhas e etapas da vida musical/profissional. Também o facto de a música fazer parte do meu dia-a-dia, desde sempre, foi fundamental. Ao estar rodeado de música a toda a hora é natural que seja algo essencial na minha vida e tornar-se-ia estranho imaginar a vida sem ela. Como disse Friedrich Nietzsche, “sem música a vida seria um erro”.
Afirmou anteriormente que Amsterdão estava no topo da lista das cidades onde a música “ocupa um lugar especial”, tornando-a num sítio ideal para viver. Depois deste tempo, c fez a escolha certa?
A cada dia que passa fico mais certo que sim. Um músico viver num ambiente onde a música tem um papel elementar, essencial, é o sítio perfeito para evoluir. Aqui tenho a oportunidade de conhecer grandes músicos e de tocar para públicos muito interessados, conhecedores e curiosos. Aqui passam muitas orquestras que apresentam sonoridades fantásticas e criam momentos brilhantes em palco. É muito bom vivenciar esses momentos e poder, também, fazer parte deles.
Actualmente, estuda direcção de orquestra no Conservatorium van Amsterdam e na Accademia Italiana di Direzione d’Orchestra, em Milão. Como divide o seu tempo entre estas duas academias? De que forma uma formação acaba por complementar a outra?
Amsterdão é a minha base já há algum tempo. A Milão vou, normalmente, uma vez por mês e tenho aulas intensivas. Para mim são formações que se complementam pela oportunidade de trabalhar um vasto repertório com regularidade e ter abordagens técnicas e sonoras diferentes. É muito interessante perceber a diferença na produção de som de um lugar para o outro. Um maestro tem de se saber adaptar e dominar várias ferramentas para conseguir ‘moldar’ esse som. Em Itália, tenho contacto com a tradição musical na prática das grandes obras orquestrais. Em Amsterdão tenho uma abordagem muito variada, com interpretação de música contemporânea e ópera, com orquestras, bem como grupos mais pequenos.
Destaque alguns dos momentos mais importantes da sua vida/carreira no último ano.
O ponto alto da temporada passada foi, sem dúvida, ser maestro assistente da Orquestra de Câmara Portuguesa (OCP) e da Jovem Orquestra Portuguesa. A OCP celebra este ano 15 anos de existência e é para mim um prazer enorme fazer música nesta casa. A convite do Maestro Pedro Carneiro, director artístico e musical, vivi momentos fantásticos com as duas orquestras tanto na sala de ensaios como em palco. Destaco os concertos com a Jovem Orquestra Portuguesa no Centro Cultural de Belém e na Konzerthaus de Berlim, no Verão passado.
Uma vez que continua a colaborar com estas orquestras portuguesas, sente alguma diferença na forma como é trabalhada e valorizada a música clássica entre os Países Baixos e Portugal?
A nível de trabalho as orquestras portuguesas funcionam, em geral, da mesma forma que as orquestras noutros países. Há uma espécie de método para fazer este grande colectivo de músicos funcionar. Há diferenças no som, o que torna as orquestras únicas.
Na minha opinião, falta valorizar os compositores portugueses nos concertos em Portugal, e outra coisa que falta no nosso país são salas dedicadas exclusivamente à música. Salas de concerto preparadas para acolherem orquestras e grupos de música de câmara com acústicas estudadas ao milímetro. Isso vê-se muito nos Países Baixos e na Alemanha. A experiência de ouvir um concerto e também a produção de som de grupo numa sala dessas é realmente especial. Seria fantástico haver uma Sala de concertos na Região. As casas de espectáculos que temos em Portugal são quase todas ‘polivalentes’ para acolher teatro, bailado, conferências, etc. Por outro lado, há uma diferença clara no público. Aqui as salas de concerto estão quase sempre cheias, enquanto em Portugal é mais difícil “agarrar” o auditório.
Encontra-se a desenvolver um projecto que lhe permitirá, em breve, vir aos Açores. Que projecto é esse e o que pode partilhar sobre ele?
Como açoriano, tenho sempre a vontade de apresentar o meu trabalho na Região. Hei-de fazer sempre os possíveis para levar aos Açores os projectos que me são mais queridos e dos quais me orgulho de fazer parte. Se tudo correr bem, vou aparecer em casa umas quantas vezes, em breve.
Fundou o Mankes Piano Quartet grupo com o qual se apresenta frequentemente em concerto. Continuam a actuar?
O quarteto tem tido concertos em vários sítios diferentes. Cada um dos elementos do grupo tem as suas carreiras individuais e estamos a viver em sítios diferentes, mas quando temos concertos programados juntamo-nos para ensaios intensivos e estamos todos focados a 100% no grupo. Quando nos juntamos fazemos sempre vários concertos. Nos últimos tempos temos tocado bastante em Portugal. Agora em Dezembro vamos ter um concerto em Lisboa para a Antena 2, e em Julho passado fizemos uma digressão pelos Estados Unidos que passou por Nova Iorque e Filadélfia, entre outras cidades.
Uma vez que Ponta Delgada está a concorrer para se tornar Capital Europeia da Cultura em 2027, que passos pensa que faltam ainda dar na Região para que este título seja bem empregue?
Acho que a Região está num óptimo caminho para receber esse título. Ainda faltam cinco anos e até lá muito pode ser feito. Há uma grande valorização da cultura local e isso é muito importante. É uma belíssima oportunidade para a música e para os músicos locais irem mais longe e também deve ser uma oportunidade para trazer o que se faz do outro lado do oceano. O intercâmbio cultural é sempre muito enriquecedor. A música vive de várias culturas e isso torna-a transcendente. Esta candidatura também é um valioso laço entre as ilhas. Acredito que pode aproximar os ilhéus e fortalecer uma identidade comum da Região. E irá certamente aproximar o arquipélago da Europa, que às vezes parece tão longe. É muito importante que este ‘terramoto’ cultural venha para ficar muito para lá de 2027.
Considera que houve uma evolução positiva nos Açores a nível cultural?
Sim. Foi aparecendo uma grande quantidade de instituições culturais que valorizam ramos culturais específicos, alguns que estiveram em falta nos Açores até há pouco tempo. Começa a haver óptimas condições para quem vive de cultura e para quem a absorve e vivencia. O público também foi crescendo e amadurecendo nos últimos anos, o que prova que os açorianos vão ficando cada vez mais curiosos e ávidos com a maior oferta cultural.
Considerando a grande “fuga de talentos” que existe de momento, isto é, a quantidade de jovens que saem dos Açores em busca dos seus sonhos e ambições profissionais, pensa que esta fuga pode beneficiar o arquipélago ou, pelo contrário, prejudicá-lo?
Penso que só beneficia o arquipélago no sentido em que esses jovens não só levam o talento que existe na Região mais longe como também trazem para o arquipélago aquilo que absorveram fora, seja por voltarem à região ou por trazerem os projectos que desenvolvem no exterior.
Como olha para o futuro da sua carreira?
Olho com ambição e expectativa. Espero continuar a fazer muita música, por vários sítios, à frente ou no meio da orquestra.
Considera que o seu futuro profissional poderá algum dia passar pelos Açores?
Espero que surjam sempre oportunidades para voltar a casa e apresentar o meu trabalho. E, se assim for, hei de passar muitas vezes pelos Açores.