O Coordenador do Departamento de Investigação Criminal da Polícia Judiciária nos Açores, Renato Furtado, afirmou ontem em Ponta Delgada que em 2021 entraram na PJ da Região 97 denúncias de abuso sexual de menores e/ou contra a auto-determinação sexual de menores e foram finalizadas com sucesso 44 acusações de crime que chegaram às barras do tribunal.
No ano anterior, em 2020, surgiram na Polícia Judiciária dos Açores 103 denúncias e foram finalizados com sucesso 43 processos que foram a julgamento.
Vinte anos antes, em 2000, deram entrada na Polícia Judiciária da Região 12 denúncias e foram concluídos sete processos com sucesso que chegaram a julgamento.
Verifica-se, assim, que, em 2000, o número de processos entrados ou saídos “era bastante baixo comparativamente com 2021. A tendência de entradas foi sempre a subir” com os impactos provocados pelos processos Casa Pia e Farfalha. “Isto fez com que as vítimas tivessem mais confiança em relatar o seu processo de abuso, em se assumirem como vítimas, e por isso é que houve aquele aumento exponencial”.
Mas, como deixou claro Renato Furtado, o fenómeno “não começou aqui. Estamos cientes disto. As cifras negras eram maiores. Conseguiu-se diminuir um pouquinho as cifras negras, por isso começamos a ter conhecimento da realidade. E, depois, começou sempre com tendência crescente até à actualidade em que está a níveis bastante altos” provocando a pandemia, com mais presença do agregado familiar dentro de casa, uma diminuição dos casos reportados.
O Coordenador da PJ clarificou também que o gueto que existe entre processos entrados e processos concluídos com sucesso “não tem a ver com situações de arquivo por insuficiência de prova. O que há aqui é muito arquivamento mas depois da situação estar esclarecida, aquilo que chamamos resolução policial”.
Explicou que, desde há uns anos a esta parte que a PJ tem feito muitos esforços junto da Unidade de Saúde da ilha de São Miguel, juntos das Comissões de Protecções de Jovens e Menores e junto das escolas para “nos transmitirem a notícia do crime o mais cedo possível. Nós não queremos que estas entidades tenham uma intervenção junto da vítima nem do seu agregado familiar com a preocupação de confirmar o uso antes da denúncia, de pensar: isto vai incomodar a polícia numa fase tão embrionária. Não, antes pelo contrário, o que nós precisamos é ter conhecimento da notícia do crime, do suposto crime, da hipótese de ser um crime. O inquérito também visa isto, saber se é ou não um crime”.
Tal circunstância leva a que a denúncia “chega rapidamente à Polícia Judiciária e é a PJ que chega pela primeira vez junto da vítima e interage directamente da família. E isto permite esclarecer, com alguma segurança, se estamos perante um crime de abuso sexual e, por causa desta táctica, temos um aumento muito significativo de entradas de processos e um não tão significativo aumento ao nível dos processos concluídos com sucesso. Tem a ver com os processos que nós aceitamos, mas esclarecemos imediatamente que não se validou a existência do crime de abuso”. Aliás, como salientou, “ taxa de arquivo puro e duro é muito baixa nos crimes sexuais. O processo ou vai para arquivar ou é esclarecido no sentido de que não houve um crime”.
Renato Furtado fez, depois, uma distribuição dos inquéritos finalizados com destino a potencial acusação. Processos “em que acreditamos em que houve um abuso sexual”: 57% em São Miguel; 21% ilha Terceira; 8% no Faial; 5% em São Jorge; 4% no Pico; e as outras ilhas com números que estão a ver.
Colocou a questão sobre se “este é um fenómeno sobretudo de São Miguel” e, depois, deu a resposta. “Há aqui uma situação diferente e maior preocupação a ter em conta. Mas, se fizermos aqui uma taxa de utilização, não é assim. A maior parte da população açoriana passível de ser vítima deste crime, menor de 14 anos, está, de facto, em São Miguel. E esta taxa de vítimas por mil não seria mais elevada do que nas outras ilhas. Aliás, as ilhas mais pequenas, com poucos processos, dariam taxas de vitimização muito altas”, justificou.
As alterações do código penal
o caso Farfalha e crianças
que se vendem por um cigarro
O Coordenador da PJ falou da importância da evolução do Código Penal nas situações de abuso sexual e realçou algumas das alterações. Em 1982, no início da vigência do Código Penal, os crimes sexuais, em geral, independentemente de serem crianças ou adultos, mesmo com o exercício de violência, mesmo naquilo que são as práticas que hoje conhecemos, como violação ou coação sexual, a moldura penal era de três anos. Se fosse uma criança menor de 14 anos, não se exigia o constrangimento, mas a moldura penal também era três anos.
O código evoluiu, nas molduras penais actuais, três anos de pena hoje é para actos exibicionistas, condutas impróprias, mas leves, perante uma criança menor de 14 anos.
A evolução começou em 1995 em que os crimes sexuais passaram a enquadrar-se nos crimes contra as pessoas. Passaram a ter um capítulo específico que é o capítulo contra a liberdade sexual e contra a auto-determinação sexual.
A revisão de 1995 introduziu o abuso sexual de crianças. E a partir de então, mesmo os toques nas regiões relacionadas com o sexo passaram para oito anos de punição. Se fosse um acto sexual qualificado, mais introduzido, com coito anal, a pena passou para 10 anos. (…)
“O termo jurídico passou a ser a auto determinação sexual. Isto tem a ver com as questões da baixa idade da vítima e do conhecimento que a prática fará dos actos sexuais contra menores e todo o seu normal desenvolvimento. Esta é a razão dogmática de alguns juristas para justificar este tipo de crime específico próprio que tutela apenas os menores. Considera-se que o menor é incapaz de exercer a sua liberdade sexual por lhe faltar capacidade de análise, decisão e responsabilidade. E o seu consentimento é irrelevante. Ele não tem o alcance do crime que está a acontecer”, explicou Renato Furtado para depois dar exemplos.
“Nós temos situações de crianças que se deixam levar em condutas deste género em troca de um cigarro. Obviamente que uma criança destas quando chega a idades de 20 e 21 anos, talvez e aí que o trauma assenta e apercebe-se daquele aproveitamento da sua inocência. Naquela altura não sabe o que estava a negociar. Tem aquela vontade imediata das sapatilhas e do telemóvel ou coisas mínimas, em algumas vezes, só de afecto e de atenção, deixa-se levar nestas práticas e o dano psicológico é que pode ser deferido no tempo. Estes é que são os crimes contra a auto determinação sexual. “Enquanto na liberdade sexual, o dano é imediato em função do constrangimento, nestes crimes específicos de que estou a falar, o dano pode ser diferido no tempo”, explicou..
Renato Furtado falou também da alteração do código em 2007. A partir deste ano, todos os crimes sexuais envolvendo menores, excepto um, passaram a ter uma natureza pública. Antes era semi-pública.
“Eu recordo-me quando estava em investigação no caso Farfalha, houve uma altura extremamente complicada em que existiu uma pressão por parte dos visados junto dos legais representantes das vítimas, no sentido de desistirem de queixa. Então, o crime era semi-público. Felizmente, houve uma resiliência destas pessoas na manutenção do procedimento criminal porque se viessem ao processo desistir de queixa, uma situação com a gravidade que é conhecida tinha dado zero”, sublinhou.
E, prosseguiu o Coordenador da PJ, uma outra questão que foi fundamental para o sucesso da investigação do Farfalha teve a ver com as declarações para memória futura. Na altura, não eram obrigatórias. Dependia do entendimento dos magistrados. O Ministério Público a promovê-las ou não. E o magistrado judicial a autorizá-las ou não. Portanto, o facto de ter sido autorizado e terem sido tomadas as declarações para memória futura, foi de fundamental importância para o desfecho que se conhece daquela investigação”, concluiu.
O crime de abuso sexual de crianças passou para o artigo 171 e houve também uma medida muito acertada na minha perspectiva que foram as cópulas impróprias que “deixaram de ser um acto sexual de relevo simples e passaram a ser um acto sexual agravado. Como é óbvio, a introdução de partes do corpo ou de objectos é tão grave ou, eventualmente, mais grave do que as cópulas e do coito anal normal. Acho que foi uma alteração bastante conseguida fazer esta equiparação”.
Os cuidados com a vitimização
secundária; as falsas denúncias;
e a inquirição policial
O Coordenador da PJ dos Açores abordou a questão da vitimização secundária. Segundo as Nações Unidas, a vitimização secundária é a que “não ocorre como resultado do acto criminoso (Essa é a vitimização primária), mas sim pela resposta desadequada de entidades que lidam com a vítima. Este é o conceito de vitimização secundária”. Albuquerque diz que é imperativo constitucional combater e punir a vitimização primária, a secundária e a repetida.
Depois de uma citação, Renato Furtado questiona: “Será adequado manter uma inquirição prévia às declarações para memória futura? Ou poderíamos passar directamente para as declarações para memória futura? Na minha opinião, claramente não. Parece-me e grande importância existir inquirição policial por estas três razões: Nós temos de validar os abusos, temos de saber se houve ou não um abuso antes de ir para declarações para memória futura”.
Realça que validação do abuso tem a ver com as investigações embrionárias, “mas também com as falsas denúncias. Não quero chocar aqui ninguém mas temos algumas falsas denúncias. Qual o denominador comum das falsas denúncias? Crianças de baixa idade que não se conseguem expressar, pais desavindos em processos de separação, divórcios em que a criança é uma arma de arremesso um contra o outro e, com base num pequeno indício que é visto de determinada forma não ética, usa-se aquilo para jogar contra a outra parte, abrindo processo contra o pai. Geralmente é da mãe contra o pai, mas, em muito menor número, pode ser ao contrário”.
Em sua opinião, o crime sexual também é um crime de cenário. Importa inspecção ao sítio onde aconteceu. Ou seja, temos de falar com a vítima para saber e às vezes é preciso que a vítima nos vá indicar in loco para podermos fazer (e este é só um exemplo entre muitos) recolha de ADN”.
“Que melhor trabalho podemos fazer do que potenciar e credibilizar de uma forma insofismável a sua narrativa de abuso junto às suas declarações uma forma material de ADN. Iríamos abdicar disto, de falarmos com a vítima, para agendarmos as declarações para memória futura? E isto tem de ser no dia, no momento, logo a seguir a ter conhecimento dos factos”, afirma.
Realçou também o que considerou de “tomada de medidas urgentes”: Se “hoje surgir na PJ uma notícia de um crime de abuso sexual inter-familiar, no final da noite há uma de duas situações: Geralmente, a primeira é sempre aquela que almejamos: A detecção do agressor pela PJ ou, sendo possível, pelo Ministério Público, perante a evidência dos factos. Quando isso não acontece porque entendemos que não temos fortes indícios (às vezes, suscita-nos algumas dúvidas, mas temos de proteger a vítima de qualquer maneira independentemente destas fragilidades e temos aqui as Comissões de Protecção de Crianças e Menores. E aqui surge a única situação em que se admite que seja a vítima a sair do agregado. E Isto é mesmo a solução de recurso”.
“Agora, temos de ter fortes indícios. Não vamos coarctar a liberdade de um indivíduo sem termos fortes indícios, de estarmos convencidos de que a narrativa da vítima está contada com toda a credibilidade e é aí que fazemos as detenções…”
João Paz/Luís Lobão