Jovem chef descendente de açorianos é proprietária do único restaurante português nos Estados Unidos com uma estrela Michelin

Jessica Carreira tem 28 anos de idade e, apesar de ter nascido em San José, as suas raízes estendem-se pelo Atlântico fora até à ilha do Faial, de onde são naturais ambas as suas avós e, também, a sua mãe, que acabou por emigrar com a família para o Estado da Califórnia em 1970.
Actualmente, Jessica Carreira é chef de cozinha e proprietária, em conjunto com David Costa, do restaurante Adega, localizado em San José, que é hoje o único restaurante português nos Estados Unidos da América a deter uma estrela Michelin, tendo em conta o encerramento do restaurante Aldea que existia em Nova Iorque e que foi o primeiro restaurante a receber esta distinção com que muitos chefs de cozinha sonham durante a sua carreira.
Embora tenha nascido nos Estados Unidos, a chef conta que a primeira língua que aprendeu a falar foi o Português, uma vez que cresceu rodeada pela cultura e pela língua portuguesas, quer em casa, quer na comunidade onde ainda hoje há uma grande predominância de portugueses e açorianos, começando a aprender inglês aos quatro anos de idade.
Durante a sua infância, conta, sentia um grande orgulho em ser portuguesa, algo que relembra, por exemplo, através das marmitas com refeições tipicamente portuguesas que levava para a escola, tal como carapau frito com arroz de tomate, por exemplo, o que causava estranheza entre os seus colegas que a achavam “doida por gostar de tal comida”, diz. Recorda também com alegria as festas do Espírito Santo em San José, que era a altura do ano em que toda a comunidade se juntava para celebrar esta festividade religiosa muito açoriana, sendo esta uma ocasião onde “sentia que tinha um sítio para ser ela própria”, por ser um local onde “podiam todos ser portugueses fora das suas vidas americanas, comer a comida portuguesa, ouvir a música portuguesa e falar português. Não estávamos em Portugal mas fazíamos um esforço para criar esse ambiente para matar as saudades”, diz.
Inclusive, nos dias de hoje, destaca a forma como a comunidade portuguesa tem um peso enorme em San José, sendo uma “presença já muito antiga” na cidade que, inclusive, tem um bairro chamado “Little Portugal” devido à grande concentração de portugueses que ali vivem.
Ao mesmo tempo que sentia a necessidade de explicar às pessoas com quem se cruzava este seu orgulho em ser portuguesa, quando em Portugal acabava por se sentir um pouco deslocada por não entender certas coisas, porém, acredita hoje que a sua verdadeira identidade está entre estes dois países: “Queria explicar-lhes porque gostava tanto de ser portuguesa mas, por o outro lado, quando estava Portugal de férias, sentia-me mais americana porque não entendia certas piadas e algumas pessoas não entendiam porque tinha tanto orgulho de ser portuguesa quando era da América. Foi difícil, por vezes, encontrar a minha verdadeira identidade entre as duas culturas mas hoje em dia aceito que sou uma mistura com as melhores qualidades das duas”, explica.
No que diz respeito ao seu gosto pelo mundo da culinária e da restauração, Jessica Carreira adianta que este nasceu devido ao tempo que passava a acompanhar os pais nas suas viagens de negócios, uma vez que estes, durante mais de 20 anos, foram proprietários de uma empresa de importação e distribuição de vinhos de todo o mundo, viagens essas nas quais “visitava sempre restaurantes de topo”, o que permitiu que “desde muito pequena” se apaixonasse pela cozinha e pelas experiências que os restaurantes podem oferecer. Assim, “soube logo que um dia iria gerir um restaurante de fine dining”.
Chegada a hora de prosseguir estudos, Jessica Carreira ingressou na Le Cordon Bleu, “uma prestigiada escola de culinária francesa onde a exigência pela consistência é constante”, diz a própria, salientando que esta escola foi fundamental quando entrou em cozinhas profissionais.
Em 2012, terminado o curso de culinária nesta escola, tinha em si a vontade de “sair do país e ter uma experiência gastronómica europeia”, acabando assim por partir em direcção a Portugal, onde pretendia ficar durante três meses. Porém, os três meses depressa se transformaram em três anos, porque percebeu que se sentia bem em Portugal e que “tinha ainda muito para aprender e descobrir como a comida portuguesa era trabalhada pelos chefs de uma maneira original e artística”.
Assim, acabou por estagiar em restaurantes com estrelas Michelin em Lisboa, nomeadamente no restaurante Alma e no restaurante Eleven, bem como no Porto, no restaurante DOP. Foi assim que conheceu o chef David Costa, num dos restaurantes lisboetas onde estagiou, ressalvando que ambos sempre trabalharam bem e que partilhavam desde cedo “uma maneira semelhante de analisar a comida e os ingredientes”. E foi assim que surgiu a ideia de formalizarem uma parceria e abrirem juntos um restaurante português em San José, o que viria a acontecer em Dezembro de 2015.
“Como na altura estávamos numa relação perguntei se ele queria voltar comigo para a Califórnia e abrir um restaurante português, diferente de tudo aquilo que existia e mais parecido com aqueles onde eu tinha estagiado enquanto estive em Lisboa. Ele é um grande professional, chef e amigo. Nada disto foi possível sem o David e agradeço o trabalho dele e paixão que ele tem pelo Adega”, refere, salientando que o objectivo principal do restaurante que hoje tem passa por “dar às pessoas uma experiência gastronómica portuguesa na cidade central da comunidade onde cresceu”.
Nove meses depois de começar a apresentar a comida portuguesa de “uma maneira elevada e com sabores autênticos”, a dupla de chefs conseguiu a sua primeira estrela Michelin. De acordo com Jessica Carreira esta foi “uma surpresa de que não estavam nada à espera”, mas que trouxe um enorme fluxo de clientes ao restaurante.
“De repente veio uma onda de reservas quando éramos apenas três na cozinha. Chegámos a ter seis meses de reservas antecipadas. Foi um desafio manter a qualidade com o volume clientes que entrou nesses primeiros meses depois de recebermos a estrela. Não se sabe bem qual foi o prato que permitiu ganhar a estrela mas sei que o arroz de pato e o polvo foram sempre os pratos mais populares”, conta, referindo que o restaurante tem também a sua própria versão de alcatra, que “tem sido um sucesso” e que adora trabalhar com maracujá e inhame.
Sendo agora o único restaurante português com Estrela Michelin nos Estados Unidos da América, Jessica Carreira afirma que esta tem tido a tábua de salvação do restaurante, tendo em conta os impactos deixados pela pandemia: “todos sabemos foi uma altura muito difícil para manter negócios abertos e apenas conseguimos manter o Adega em pé com o sucesso da estrela. Tenho pena que seja o único, pois seria bom para a comunidade portuguesa nos EUA se houvesse mais, muitos mais. O maior desejo é que outros chefs nos EUA se inspirem para abrir outros restaurantes portugueses com aspiração a estrela Michelin”, diz ainda.
Em 2018, Jessica Carreira veio pela primeira vez aos Açores, a propósito do evento 10 Fest, conhecido por ser o maior evento gastronómico do arquipélago, convite este que foi “algo inesperado”, adianta, mas que aceitou de bom agrado tendo em conta a grande vontade que tinha para visitar o arquipélago.
“Desde sempre que tinha vontade de visitar o arquipélago que é a terra da minha mãe e das minhas avós. Toda a minha vida sempre ouvi falar nos Açores como se fosse um lugar de fantasia. Criava imagens na minha mente daquilo que eram os Açores e depois, na realidade, foi melhor do que imaginava. É difícil de explicar, mas quando cheguei aos Açores senti-me logo em casa, como se aí estivesse estado a vida toda e tudo me parecia conhecido”, diz.
Através desta visita onde teve a oportunidade de dar a conhecer o seu trabalho, a jovem visitou o Faial pela primeira vez, onde adorou ver a casa onde a sua mãe viveu e a loja onde a sua avó trabalhou durante muitos anos, na cidade da Horta. Jessica Carreira pôde também captar o ambiente em que vivem os açorianos, “rodeados pelas forças da natureza, dos vulcões, do mar e com uma história fantástica de sobrevivência”, algo com que se relacionou de imediato.
“Isso fez-me compreender a parte forte açoriana que tenho dentro de mim. A cozinha é um mundo difícil, muito competitivo, onde uma mulher precisa de muita força para se afirmar e sobreviver num meio dominado por homens. Sei que essa força para vingar na minha profissão tem muito a ver com o espírito açoriano”, acrescenta.
Depois da sua participação no 10 Fest e depois do regresso à Califórnia, devido ao encanto que encontrou nos Açores, Jessica Carreira refere que a vontade de regressar “é enorme”, tanto pela “fonte de inspiração” que encontra na culinária açoriana, pela “riqueza do mar e da terra e pela qualidade dos produtos”.
Tamanha experiência – aliada ao facto de o arquipélago ser considerado um destino ecológico e sustentável – deixou-a com vontade de abrir um restaurante nos Açores, uma vez que estas são características que procura para a sua vida e para a sua carreira: “A ideia é abrir um restaurante com uma quinta ecológica, utilizando apenas os produtos açorianos, e não usar plástico no restaurante. Não consigo imaginar outro lugar no planeta onde me sentiria mais realizada a fazê-lo”, diz ainda a descendente de açorianos que, neste momento, está ansiosa pelo seu regresso às ilhas, que deverá acontecer em Agosto deste ano.
 

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